AFONSINHO.
Lembro-me do Afonsinho chegando sempre na rua do passeio público no inicio da “manhã raiada”, com aquele par de “olhos negros, ”incrivelmente avermelhados como uma brasa, mora? “Olhos fundos da dor de todo esse mundo”, que nos diziam claramente que “a madrugada” lhe mostrou mais mais uma vez, “a face dura do mal”, “a barra de se viver” em meio a uma “rotina” de confrontos, no comando de seu bonde pesadão, defendendo seu território da invasão de um outro bonde, até então menor e mais leve. “O show já terminou”, mas sua performance no cenário tenebroso da “noite sem luar” ainda era motivo de comentários”, agora nos principais jornais do Estado. Afonsinho fora sempre um “bom menino que vendeu limão, trabalhou na feira pra comprar o seu pão”, “gente” de “verdade”, “coisa nossa”. Digo isso porque o conheci antes de escancarar sua “janela de frente pro crime” e de sua paradoxal “fama de mau”. Vi-lo crescer correndo pelas ruas estreitas dos sobrados antigos da velha Lapa, "de casas simples com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que é um lar”. Engraxando sapatos nas ruas Mem de Sá, Glória, Tonelero, Joaquim Silva. O “pobre menino” nunca teve “sonhos”, nem muita “sorte na vida”. Recebeu “o maior golpe do mundo aos nove anos de idade”, quando se viu órfão de pai e mãe. Foi adotado, “ainda cedo”, pelo submundo do tráfico de drogas. Muitas vezes lhe dei “conselhos”, oferecendo-lhe a ajuda de “um irmão, um amigo, um lugar, um abrigo”, mas o máximo que consegui em minha lastimável vida de “pequeno burguês” foi ensinar-lhe violão e cavaquinho. Lembro de sua alegria quando conseguiu tocar uma música “a primeira vez”. Ficava “todo dia, todo dia” dedilhando o violão ou palhetando o cavaquinho, repetindo incansavelmente, a mesma melodia, a mesma letra, os mesmos poucos acordes: “se eu pudesse eu não seria um problema social. Se eu pudesse eu não seria um problema social”.
Numa determinada época, tentei arranjar-lhe uma bolsa de estudos
numa escola profissionalizante pertencente a um político influente
de nossa “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”. Entrei em
seu gabinete com essa “timidez que é minha covardia”, “morrendo de
medo”. “sabendo que ali tem pobre e se gritar pega ladrão não fica um” e “alguém me disse” que, infelizmente, ele não me receberia.
“Sua secretária, moça de boa aparência”, pôs-me para fora com “a falsa jura” de que “qualquer dia desses” me procuraria, “amanhã talvez”. Aguardo até hoje. Nas próximas eleições eles voltam a “renascer das cinzas”, cheios de “abraços e beijinhos e carinhos sem fim. Mas para acabar com esse negócio”. Agora também “não tem mais jeito, tudo está desfeito”. E “não adianta nem tentar”, pois meu pupilo já é bicho solto! Infeliz até em sua formação genética. Em seu “pulso ainda pulsa” o sangue da prostituta Laura e do malandro Murilão. Como “um rio que passou em sua vida”, “carregava uma tristeza” involuntária em suas veias, “sangrando” uma correnteza forte e traiçoeira, que “mais cedo ou mais tarde” lhe arrastaria com sua “força estranha” para o mesmo desembocar marginal de seus progenitores. Mas se Afonsinho não teve oportunidades de sucesso na vida social não se pode dizer o mesmo de “suas andanças no passo da estrada” da criminalidade onde soube, como poucos, explorar todas as chances que o submundo lhe dera. Foi avião, olheiro, fogueteiro, vapor, segurança, subgerente, gerente, patrão! Afonsinho, digo isso até com uma inexplicável ponta de “felicidade”, não perdera “os seus olhinhos infantis”, nem sua brejeirice de “menino rei”. Optou pela malandragem romântica, aquela da “nata”. A tal malandragem que um dia fez Chico Buarque de Holanda se entristecer achando que na Lapa “já não existe mais”. Afonsinho talvez “seja o último romântico nos litorais desse oceano atlântico”. Abriu mão da violência e, “só pra contrariar”, preferiu o “swing e simpatia”, a “ginga pura”, a “sensação”, o “molejo” do velho “malandro, capoeira, moleque e mulato” da antiga. Era um “negro gato”, arisco, que já havia perdido seis vidas em seus confrontos pelas ruas, becos e vielas de uma “cidade que tem braços abertos num cartão postal e os punhos fechados na vida real”. Restava-lhe então sua sétima e derradeira vida, vida esta que deveria lhe ser de “alegria, prazer, luz do dia, cor e confusão, sonho e paixão”. “Sempre desejada por mais que estivesse errada”. Mas o malandro dizia: “tô nem aí, tô nem aí...” pra preservá-la. Tanto que, mesmo sendo um dos criminosos mais procurados da cidade, “nem sei quantas vezes desceu o morro cantando, sempre com o sol lhe queimando” ou durante a “noite do prazer”, com uma “viola enluarada” pelo “luar do sertão”. “Pisava os astros distraído", sem notar a falta de sua armadura pesada: pistola, fuzil, touca ninja, rádio transmissor, colete à prova de balas e pentes sobressalentes. Ia “descendo a rua da ladeira”, “caminhando e cantando e seguindo a canção”. “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos”. Trazia apenas um “cavaquinho pra nego bater” ou um “violão debaixo do braço, parando em qualquer botequim”. E chegava até a rua do passeio público pra me mostrar mais uma estrofe de um samba novo que sempre vinha “faltando um pedaço”, com letra ou melodia por terminar. Ficava horas e horas e horas sob a “sombra de uma árvore ouvindo pássaros cantar”. Coberto e abrigado pela “fascinação” das “luzes da ribalta” e das “aquarelas” de tantos “amigos”compositores. Nessas horas, deixava de ser o tal bandidão procurado pela cidade e era apenas o Afonsinho da viola, compositor fenomenal, músico talentosíssimo que sabia, como poucos, desvendar o universo infinito e maravilhoso das dissonâncias harmônicas. É estranho chegar hoje à rua do passeio público e não encontrá-lo. “Foi a policia quem trouxe a noticia” de que “ele não vem, ele não vem”; que nunca mais virá “cantar as canções que a gente quer ouvir” pelas calçadas e ruas estreitas da velha Lapa. “Juro que não acreditei e me arrastei” até a banca de jornal do Carlão, torcendo para que fosse “mentira, tudo mentira”. Mas haviam se esgotado no inicio da manhã os exemplares que traziam Afonsinho na primeira página “estampado, manchete, retrato, com venda nos olhos, legendas e as iniciais”. Dessa vez o bonde invasor veio maior e mais preparado. Faltou-lhe fôlego dentro de sua armadura pesada: pistola, fuzil, touca ninja, rádio transmissor, colete à prova de balas e pentes sobressalentes. havia acabado sua munição. E “na hora da agonia procurou, e cadê os seus amigos, seus camaradas, seus pariceiros?” Seu bonde fiel, valente, o “simpático que nunca formou caô?” Foram todos surpreendidos e sufocados pela força tarefa do inimigo, que surgiu determinado reunindo forças especiais e apoio logístico de outros quatro morros do Rio. “Valeu Zumbi”, “valeu demais”, mas “acabou” o seu quilombo e os seus quilombolas. Alguns dos seus antigos companheiros conseguiram abandonar o terreno já minado e desguarnecido, deixando em suas costas um rastro de sangue e chumbo. Seu morro está em alvoroço com a chegada do novo comando. Agora sim, Chico Buarque de Holanda tem razão: a velha malandragem, a romântica, aquela da “nata”, “já não existe mais”, nem na Lapa nem em qualquer outro lugar do universo. Tombou “um garoto que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones”, Pixinguinha, Gabriel, Roberto, Lenine, Djavan, Noel, Caetano, Gil, Cartola. Caiu o nosso “anjo 45, Hobin Hood do morro e rei da malandragem”. “Meu Amigo de fé, meu irmão camarada”.“Moleque travesso”, “garoto maroto”, “Menino sem juízo”. O “meu guri” que de tão atarefado nunca teve tempo de terminar os seus sambas. Mas quem sabe “agora, justamente agora” que já viveu as suas sete vidas de gato “noturno”, que resolveu “partir antes da hora” e em sua “travessia” se transformou em “um lindo negro anjo”, não precisa mais “correr atrás da bola e fugir da policia”, assobiar e arregar o cana, nem enfrentar de uma vez só as pressões “descontroladas” do “bonde sinistro”, “bonde pesado”, “ bonde nervoso”, “ bonde bolado”. Quem sabe agora, “num novo tempo”, “além do horizonte”, “sozinho no silêncio da noite” não terá tempo de terminar suas melodias inacabadas? Peguei meu violão, sentei em meu banquinho no meio da rua do passeio público, solitário, e cantei para uma platéia de trabalhadores que passava agitada “voltando pra a casa outra vez”, vindos da “construção”, do “cotidiano” dessa “cidade negra”, “cidade nua”, “cidade linda”, desapercebida de mim e do meu amigo há muito tempo “guardado debaixo de sete chaves, no lado esquerdo do peito, dentro do coração”. Pensei numa última melodia em sua homenagem, lembrei de “tantas canções que ouço”, de tanta “gente”. Me preparei para Dolores Duran: “hoje eu quero a rosa mais linda que houver, quero a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem”. Mas meu violão, preferiu solar uma outra melodia em protesto. Tinha ao fundo “o sol da liberdade em raios fúlgidos” se pondo “em pleno exercício de democracia", sobre “o carnaval” de quem vê “pela janela o corcovado o redentor” e a “fome total” de uma“gente humilde” que se espreme sobre os “trilhos urbanos” no “fio da navalha” da “central do Brasil”: “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar...”. Adeus meu “prezado amigo Afonsinho”, agora músico da orquestra sinfônica celestial, "eu continuo aqui mesmo aperfeiçoando o imperfeito, dando um tempo, dando um jeito" até quando Deus quiser...
(Dudu Fagundes, O Maestro Das Ruas)