O VISGO.
Quando chovia, as ruas de barro da favela se transformavam num
gigantesco mingau de lama. Os trabalhadores amarravam sacos plásticos aos pés e seguiam ziguezagueando entre uma infinidade de possas d’água espalhadas no caminho até a estação de trens. Tentavam, inutilmente, chegar aos seus trabalhos com os pés limpos daquele barro triste, visguento, degradante, vergonhoso... Foi em dias assim, de muita chuva e barro derretido, que eu e Marcio Pereira, amigo de infância, iniciamos nosso curso ginasial no colégio municipal Abrahão Jabour, situado em um bairro relativamente nobre, projetado para abrigar uma certa elite social emergente da época. O Abrahão, como chamávamos o velho colégio, era uma referencia no ensino público e os pais pobres, residentes e resignados à crueza da favela, lutavam para que ao menos um de seus filhos tivesse a chance de estudar ali.
Chegamos ao bairro de suntuosas casas e gigantescos arranha-céus, de ruas largas e limpas. Atravessamos os enormes portões do renomado colégio com os nossos velhos sapatos cobertos pelo visgo da lama pegadiça da favela e fomos imediatamente hostilizados pelos estudantes residentes no conceituado bairro, nos juntando forçosamente a enorme massa de estudantes de pés enlameados, acuada na descomunal fila do refeitório público, ávida por comer a imprescindível merenda gratuita oferecida pelo estado. Enquanto os que zombavam de nós, saboreavam finas guloseimas na cantina particular bem à nossa frente.
As primeiras semanas foram de humilhações, preconceitos, escárnios,
de zombarias gratuitas. Aos indefesos favelados de velhos sapatos
impregnados de barro viscoso, restavam apenas o silenciar, o baixar de cabeças ante as pilhérias e provocações daquela elite de alunos
endiabrada. Eram os predadores, os legítimos donos de um território desconhecido e assustadoramente inóspito. Dentro de pouco tempo bolei um plano mirabolante, que não só haveria de nos tirar daquela situação vexaminosa, como também daria uma grande lição àquele enorme grupo de alunos que todos os dias nos oprimia, humilhava, comprimia... Segredei minhas ideias ao amigo Marcio Pereira que, usando suas incríveis aptidões para resoluções de problemas e cálculos matemáticos, ajudou-me a definir os meios com os quais se propagou pelos quatro cantos do Abrahão o seguinte aviso:
“-Todos os alunos que comiam na cantina do colégio teriam que oferecer suas comidas e bebidas caras aos alunos pobres da favela. Em contra partida, estes, convidariam gentilmente os alunos ricos para também comerem no refeitório público do colégio. Quem discordasse ganharia uma enorme surra do pessoal da favela.”
Reunimos os favelados do colégio num levante gigantesco e depois de algumas caras realmente quebradas nosso projeto foi posto em prática. Em poucas semanas o Abrahão virou um pedaço de céu. A cortesia e a camaradagem entre os alunos reinavam absoluta e liberalmente: dividiam comidas, diminuíam distâncias, multiplicavam amizades e reduzia-se a zero o índice das desigualdades.
Mas como tudo o que é bom dura pouco, um dia eu e Marcio Pereira fomos chamados repentinamente à sala da temida coordenadora, dona Solange, a qual apelidávamos as escondidas de “Camburão.” Ela descobriu nossa estratégia de socialização forçada, nos trancou no terrível gabinete do segundo andar do colégio e nos passou o maior sermão de nossas breves e efusivas vidas:
-"Vocês já são marginais! Mas não vou admitir que corrompam os filhos das pessoas de bem que estudam nesse colégio!”
Essas palavras cravaram na minha alma feito um punhal e me doeram mais que a suspensão e a surra subsequente fracionada por minha
mãe e potencializada por meu pai. Durante toda a minha existência a
voz de dona Solange, o “camburão”, vociferando tais frases me acompanharia, ecoaria dentro de mim, reverberaria na minha alma, me tiraria o sono, redefiniria os alicerces da minha personalidade, me
obrigaria a nadar incessantemente contra o vento forte e maré
contrária. Me faria lutar com todas as forças para que essa macabra
profecia não se cumprisse em minha vida de menino pobre, em
permanente risco de exaurir-me na lama, no visgo, nos laços e armadilhas naturais da favela.
Terminei o ginásio e, apesar de trabalhar em dois empregos, continuei
sempre estudando muito. Zumbiando sobre incontáveis páginas de livros nas desoras solitárias no interior da comunidade. Quando me sentia cansado, as palavras de dona Solange, o “Camburão”, me espetavam como uma substancia motivadora injetada no espirito a dar-me coragem para continuar a luta contra aquela triste sina prevista em sua voz fantasmagórica, eternamente apavorante.
Depois de muitos anos me tornei músico, jornalista, diretor de
cinema... Viajei o Brasil e o mundo levado nas asas dos meus mais
diversos trabalhos. Um dia, durante a exibição de um dos filmes que
dirigi na Europa, resolvi exercitar-me correndo ao nascer do sol pela
orla que margeia a linda costa portuguesa entre Cascais e Estoril.
Acabava de sintonizar meu aparelho celular via internet em uma rádio
de músicas brasileiras, quando a programação foi interrompida para uma notícia de última hora. Aos meus ouvidos o locutor passou a ter a voz fantasmagórica, eternamente apavorante de dona Solange, o Camburão” do velho colégio municipal Abrahão Jabour, vociferando que sua profecia não fora de toda apócrifa:
-"Em uma incursão aérea, de características cinematográficas, a
polícia carioca matou hoje o traficante de drogas mais procurado do
Brasil, Marcio José Sabino Pereira, o Matemático.”
Parei de correr, olhei para o mar e sussurrei na direção do infinito, respondendo ao locutor, a dona Solange o “Camburão”, ao mundo inteiro:
-"Só quem nasce e cresce na favela sabe como é difícil andar na lama sem sujar os pés..."
(Maestro Das Ruas Dudu Fagundes)