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UM BAOBÁ REVOLUNCIONÁRIO
 
 
      O velho combatente era baixo, tinha ebúrnea brancura na pele e dono de um porte razoavelmente fornido. Um baobá revolucionário. Provável que, pela idade provecta, é que ele coxeava de uma perna. Mas era de andar bastante firme e aligeirado. 
 
      No acompanhamento às passeatas, portava sempre ao bico um charuto, daí o motivo pelo qual não costumava ser de conversa com ninguém. Cabisbaixo, centrado em seu ofício de manifestante, o sério mesmo daquele cidadão idoso era participar de passeata.
 
      Vi-o por diversas vezes em cordões estudantis, alguns movimentos mais ecléticos, nestes figurando outros segmentos da sociedade, sob o tacão da ditadura. Dele já ouvira falarem algo, mas só por cima, lá no bairro onde, como ele, também residia minha prima-irmã.
 
      Por terceiros, justo naqueles arredores de Fortaleza, soubera que o tal homem era comerciante do ramo de secos e molhados e, com o seu armazém de esquina, à frente da igrejinha de Aparecida, fornecia mercadorias para as bodegas ou mercearias da zona sul da cidade.
 
      Atacadista, portanto, vendia em grosso para os merceeiros do grande bairro Montese e adjacências.
 
      Egresso do velho Partidão, Seu Ramalho era, por assim dizer, um ativista do bloco do eu-sozinho, já que sempre o vi sozinho, meio à estudantada. E não havia passeata nenhuma na qual ele não registrasse lá a sua presença, também com o seu devido e silencioso protesto contra a ditadura militar.
 
      Podia, nesses atos públicos, ali dos anos de 60 a 80, faltar um ou outro estudante do Diretório Central, gente da cúpula das organizações de esquerda, ou que faltasse alguém da coordenação dos movimentos envolvidos nas manifestações, porém aquele assíduo e contumaz admirador do PCB é que não gazeava a nenhum ato público.
 
      Para sorte dele, que já não tinha tanto prumo nas pernas, e ainda para sorte nossa, também, de modo geral, em nenhuma das refregas que o pude ver em marcha, felizmente, nunca sucedeu repressão truculenta das forças da ditadura. Eles só espionam abertamente ou à socapa. Sorte dele e também nossa, pois como seria olhar e ver um macróbio, a mancar, em desembestada carreira?
 
      Como à boquinha miúda as coisas todas se vão pondo sempre a nu, aí pelos serões da rua, tempos depois soube, por intermédio de uma ex-namorada, que Seu Ramalho teria sido viúvo e, à época desses acontecimentos, estava casado em segundas núpcias com uma prima da minha dita namorada.
 
      Ora, então passei a ler na atitude do velho militante da esquerda maior heroísmo e combatividade. Pois ele, com vidinha razoável, em matéria de pecúnia, até economicamente bem sucedido, não media esforços em marcar presença nas manifestações quase que exclusivas de estudantes, pequenos e tímidos grupos eclesiais e de comunidades, pouquíssimos operários e somente alguns gatinhos pingados de sindicalistas.
 
      Mas Seu Ramalho sabia como ninguém de quantos e muitos companheiros seus, lá das fileiras do glorioso Partidão, desde os idos de 64, haviam sido espingardeados pelos “anos de chumbo”, nas lutas pela liberdade. Não duvido que a figura de Marighela, que fora emboscado e trucidado em uma viela, em São Paulo, lhe andasse sempre pregada à tabuleta da lembrança.
 
      Seu Ramalho, portanto, sabia da missa um terço inteirinho, com certeza.  E por isso metia o pé na poeira das manifestações político-sociais. Não fazia corpo mole como a oportunista classe média, em seu maior percentual. Era homem do front e, sem dúvida nenhuma. E, seguramente, possuía lá as suas convicções.
 
      Faço do gesto desprendido e corajoso daquele quixotesco cidadão um causo para que possa aqui e alhures ser contado com letras de vivas cores, vozes muito possantes e em altos alaridos bem vingados na memória das lutas sociais da capital cearense.
 
      Enquanto grande parte de setores da flutuante e inconstante classe média se acovardava ante o golpe de 64, ao passo que pelegos sindicais traíam os seus afiliados trabalhadores, um homem idoso e sozinho botava seu bloco nas ruas, praças e avenidas para assinalar seu grito de revolta contra a desgraceira do arbítrio: o regime de exceção que prendia ilegalmente, torturava, assassinava a sangue frio ou dava sumiço em um número ainda incalculável de brasileiros, até hoje ainda sem contagem exata.
 
      Anoso, que já fora faz cerca de quarenta anos, com certeza Seu Ramalho, hoje, não é mais pertencente ao mundo dos nossos viventes. Mas quis lhe prestar esta homenagem simples, porque o caminhar dele tão apressado, mesmo estando manco de uma perna, o seu charuto e a sua sisudez, sem com ninguém jogar palavra, ainda são cenas que nunca irei tirar da menina dos olhos.
 
Fort., 09/02/2014.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 09/02/2014
Reeditado em 09/02/2014
Código do texto: T4684167
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