O abandono
Lenise sentou-se na cadeira de palha da varanda de sua pobre casa. Era tardinha e os filhos estavam brincando. Três ao todo e o quarto na barriga. Entregou-se àquele entardecer como se fosse o último. Fechou os olhos e acariciou o ventre com amor. Sentiu o vento no rosto a enxugar o suor da lida e do abandono.
Sentia-se fatigada de tanto pensar, com o peito em dor doou-se por inteira ao destino que se lhe abria de uma hora para outra, exatamente no momento em que o marido fora internado em algum hospital da capital pela perda do juízo. Bebia muito aquele homem e se por um lado sentia-se aliviada com a internação, por outro lado sentia-se só com todas as responsabilidades do porvir.
Sabia que não tinha condições de fazer o trabalho do marido naquele fim de mundo e a gravidez em estado avançado não lhe permitia pensar no que aconteceria com os outros filhos. A dor foi tomando conta de todo o seu corpo, como uma vertigem lenta, antecipando todos os sofrimentos que teria de passar. Já tinha avisado os parentes, dela e dele. Por certo haveriam de ajudá-la de alguma maneira, visto a situação chegar aonde chegou.
Escutou os gritos dos filhos a reclamar de fome e levantou-se num ímpeto. Esquentou o que sobrara do almoço e alimentou um a um sem pensar em si e o que restou – parcas migalhas - foi o que comeu, em prioridade daquele que viria, porém a sua única vontade era de mudar tudo e todas as coisas, ou simplesmente não comer nunca mais.
Agarrou-se ao sentimento mais profundo da vida e seguiu adiante; limpou a cozinha e tratou dos outros afazeres que exigiam urgência.
“Todos tão pequenos” ela pensou, e as lágrimas lhe escorreram pelo rosto cansado da juventude. Tentaria fazer o melhor que pudesse, até a chegada do neném.
“Quatro filhos!” Disse em voz baixa num desespero de agonia. Ainda bem que o marido estava internado sem previsão de voltar, porque se ali estivesse, lhe meteria o quinto filho barriga adentro. Não aguentava mais tanta miséria.
“Todos descalços!” E recomeçando o choro dolorido e incontrolável foi até a janela para respirar o ar que lhe faltava. Ela passou a mão no rosto para afugentar tanta fraqueza e em seu íntimo sabia que mesmo que a família chegasse seu sofrimento não terminaria ali. Não tinha condições de manter os filhos por muito mais tempo e não saberia como teria aquele que iria nascer. Era o marido que trazia a parteira, era o marido que lidava com quase tudo o que existia fora de seu mundo, não sabia como fazer para alimentar as crianças com outras coisas que não tinham em casa.
Era difícil imaginar uma caminhada a pé com todas aquelas crianças e todas descalças, inclusive ela própria, até a cidade para pedir ajuda. Era difícil a sua vida de mãe.
Foi quando ela sentiu as dores do parto e as crianças choravam que apareceram seus familiares, dois irmãos e um cunhado. Sem muitas explicações, ajudaram-na durante o parto, deram de comer aos pequenos e trataram de cuidar o que jazia abandonado.
Vieram com um táxi da cidade, colocaram todos dentro, quase nenhum pertence fora levado e o bebê estava enrolado num lençol surrado e muito velho.
Naquela noite, na casa de uma irmã de Lenise, tudo estava bem e morno como um aconchego. Os filhos dormiam com os primos, tinham tomado banho e comido muito bem e então chegou a hora da verdade. Ficaria ali para sempre se pudesse, porém não podia. A irmã disse que conseguiria criar um dos filhos da Lenise sem problemas, inclusive dando-lhe educação, e ela arregalou os olhos diante daquela proposta impensável.
Era muita dor em seu coração quando o cunhado disse que levaria dois para o Paraná - onde morava – e o outro ficaria com o outro irmão de Lenise até que a situação melhorasse para que pudesse então juntar seus filhos. Não poderia vender aquele pedaço de chão sem a assinatura do marido. Teria que trabalhar em algum lugar até que ele voltasse da internação, se é que voltaria algum dia.
Segurou o bebê junto de seu coração, acordou os outros filhos e despediu-se deles sem chorar, sem lamentar e sem se desculpar.
Precisava mostrar que a mãe deles era forte o suficiente para aguentar tantas provações e eles precisavam saber disso e tinham que esperá-la.
Foi-se embora no meio da noite, porque sabia que se ficasse não teria coragem de deixar os filhos com os outros. Escutou os gritos e os choros e pôde sentir as lágrimas deles dilacerando a sua alma. Não conseguiu olhar para trás.
Precisava fazer aquilo para poder ajudá-los e para que pudesse continuar vivendo. Foi dormir na casa de uma mulher sua conhecida da infância e no dia seguinte, com os peitos vazando leite, porque não tinha mais como dar de mamar, porque seu bebê havia ficado, porque ele não conseguiria resistir à dura empreitada consigo, porque ela os amava demais para deixa-los morrer a míngua e foi pedir emprego de casa em casa, de comércio em comércio e no fim de uma semana conseguiu. Dormiria no emprego, porque não tinha lugar para dormir e olhou admirada aquela alma auxiliadora trazendo um par de chinelos para calçar.
O marido nunca mais voltou e um Juiz concedeu-lhe, quinze anos depois, o direito de vender as terras que tinham, e foi o que ela fez. Tentou a todo custo que seus filhos voltassem para junto dela, mas o que conseguiu foi uma casa vazia. Completamente vazia.
Nenhum dos filhos quis voltar. Os dois menores não a reconheciam como mãe mesmo sabendo que ela era a mãe deles e os dois maiores não entenderam nunca a atitude dela naquela noite de abandonos.
E então Lenise sentou-se em sua cadeira nova de palha na varanda.
Respirou pela última vez o entardecer. Fechou os olhos e acariciou o ventre daqueles quatro filhos que nunca esqueceria em sua vida. Sentiu o vento em seu rosto, mas ele não foi capaz de enxugar as lágrimas do seu coração.