Ilha do Medo
Numa manhã de sábado estavam Zé da Boa Morte e eu. O
primeiro, pescador descendente de uma família que a gerações vive do
pescado à beira da maré. Gente que vive à espera da aleatória fartura
no mar e posteriormente na mesa. Pessoas que amam a natureza e os
seres que nela vive, agregados mutuamente se respeitam, como uma
grande família.
Nós dois esperávamos a maré subir para desatolar o barco da
areia. Boa Morte é um indivíduo que ainda vive. Na atualidade trocou
a vida de pescador para empenhar-se como contador de histórias e
tomador de cachaça. Sendo ele de raça meio que Saruaba, a mais
braba raça de demônio existente na terra, seres com o cabelo ruim e
quase amarelado, pele avermelhada com dentes separados e os
marcantes olhos claros da raça, que contrastam com as feições rudes e
grossas do exercer do rigoroso trabalho físico.
Dizem os caçoadores boateiros que Zé nunca calçou um sapato
e sequer andava de sandálias, por essa razão seus pés são
extremamente rachados e mais duros que o couro de qualquer jacaré
velho – lembro que ganhara apostas pisando em brasas e vidros - e
dizem também que nunca viera a Salvador. Diz ele mesmo que
quando foi passou muito mal por causa de toda aquela gente e tanto
barulho. Eu o entendo muito bem e tenho absoluta certeza de que sei a
razão porque que ama tanto sua terra.
Pois é, nesse dia, com minha quase estúpida euforia de turista
empurrava inutilmente o barco, atolado na areia a fim de adiantar o
passeio e visitar a chamada Ilha do Meio, também conhecida como a
Ilha do Medo. Chamada ilha do meio pela localização geográfica, pois
fica entre Itaparica e Salvador. Alguns dizem que ela serviu de forte
para os franceses. Outros dizem que na ilha funcionava um
monastério. Outros ventilavam que era um calabouço para escravos.
Sei também de rumores que a ilha esconde alguns mistérios
sobrenaturais. Chamada de ilha do medo por diversas correntes dos
mais variados historiadores e pescadores de plantão, que não tem o
que fazer e cada qual com sua história na ponta da lingua, verbera sua
versão para o nome da famosa ilha.
O que mais me convence é que foi chamada de Ilha do Medo
pelo fato de pessoas insensíveis abandonarem algum animal de
estimação, principalmente gatos e cães e subsidiariamente qualquer
bicho estranho que quisessem sacanear. A Ilha se tornou um local
infestado de grande biodiversidade e de estranha cadeia alimentar.
Animais estranhos foram vistos e outros desapareceram. Esse grande
alojamento de animais, que por viverem sem abundante comida, ou
por se sentir presos, ou por falta de cópulas, atacavam qualquer
visitante que ultrapassasse as margens da ilha. Porém, a principal
veracidade de ser o nome Ilha do Medo é por causa dos holandeses.
Sabe-se que os Itaparicanos e os nativos mais velhos do recôncavo
odeiam holandeses. No passado os holandeses copularam com as
filhas de todo mundo aqui no recôncavo e tomaram várias surras
consecutivas em nossas terras e muitos, extremamente acuados,
escondiam-se dos furiosos pais de filhas embuchadas, na Ilha do
Medo.
Ninguém ia naquela ilha a não ser para pescar e mesmo assim
poucos aderiram a essa bravura, quem pescava qualquer coisa
diferente dizia logo que foi nas intermediações da Ilha do Medo.
Pescador é um bicho que sabe mentir e com imaginação fértil digna de
Spilberg e persuasão a nível de grandes advogados. Pescador mente e
acredita em mentiras dos outros e é por isso são grandes cornos
também.
Bem, a mencionada ilha é temida por inúmeros fatores além
dos citados. Por haver corais por todos os lados, podendo estes romper
o casco do barco e o temor do ataque de moscas gigantes chamadas
"mutuca", que atacavam em bando de centenas qualquer visitante que
ousasse pisar o solo e parecida coisa fazia o temidíssimo "peixe
gilete", que é tão diminuto, possuindo as nadadeiras mais afiadas que
qualquer navalha atacando em centenas o coitado, rasgando o corpo
em pequeninos talhos enquanto os outros vão beliscando a carne
aberta. As perigosas enguias que mordem, ficam presas e giram em
360° graus ou os peixes pedra, que só de pisar o cidadão é
envenenado, vê a vida toda passar diante dos seus olhos e morre em
poucas horas com febre de 40 e tantos graus. Todos esses periculosos
seres, habitantes felizes da ilha do medo, em suas rotinas, defendendo
seu habitat dos psicóticos e famintos seres humanos. Sabendo-se que
os animais da Ilha do Medo, embora não tenha raciocínio lógico, não
entendem a razão de um pescador vir na ilha sozinho e matar toda
vida que conseguir e leva tudo em seu barco, sem comer nada na hora
e coitados dos bichos da ilha que morrem de medo na época do São
João, traumatizados com a pesca de bomba.
Pois é, estavam Zé da Boa Morte e eu a sair em direção a Ilha
do Medo. Eu com meu idiota entusiasmo de qualquer amador em
férias pedia a Zé o leme e ele fazia gesto de consentimento com olhar
de quem anda de barco todos dos dias e de que conhece qualquer
barulhinho do motor e não aguenta mais andar de barco. Após uma
hora de barco, no horizonte a ilha surgiu um único aglomerado de
verde no meio do mar, distante de todas as outras terras, no meio da
imensidão do mar. Com total perícia e digno de respeituosidade, o
grandioso pescador Zé da Boa Morte pede o leme e atravessa com
destreza os temíveis corais e os peixes gilete, passa um ar de avançada
perpiscácia e olha sem medo os pérfidos corais ávidos por destruir
esse tal barco de resina. Querendo mostrar coragem, pulei do barco
pensando estar raso, estava, mas a lama engoliu minhas pernas e
algumas mutucas se deliciavam com minha pele queimada, acho hoje
que para as mutucas era uma deliciosa carne mal passada só
conseguida em melhores churrascarias. Ao fim de muita luta e de
ouvir a música de fundo desse desgraçado rir em vários tons e com os
meus olhos quase cerrados e com os meus gritos de últimas energias,
reuni forças para chegar à areia firme, soltava urros de superação
enquanto Zé já estava sem ar de tanto rir. Ao levantar a vista ele
boceja a minha frente dizendo: bora lá véi. Andando pela areia
fervendo e gemendo de dor enquanto o escroto se delicia com ostras
cruas e frutos excêntricos dos mais variados sabores e comia
gulosamente os bichos vivos com limão trazido de casa, para
temperar. Adentramos a mata nos desviando do objetivo da pescaria
afim de encontrar os pés naturais da erva do diabo, que davam ali que
nem mato, sempre tão relatados pelos poucos desbravadores da ilha.
Após algum meio quilômetro por meio de mangues e meus pés em
brasa, nos deparamos com um imenso buraco encobertado por capim e
arbustos, próximo às ruínas de uma misteriosa e antiga construção,
feita com óleo de baleia, dizem ser um forte, calabouço, monastério,
não sei bem.
Essas ruínas de construção escondem mistérios tão antigos
quanto os que rodeiam a ilha. Existem desenhos rupestres, ou
existiam, com imagens de mapas, revelando algum desconhecido
tesouro, além de figuras humanas sendo afugentadas por seres
estranhos, talvez bichos ou fantasmas. Por meio de indicações dos
mapas presentes no local, biólogos e mergulhadores passaram anos em
busca de onde ficaria aquele tal “x” do mapa. O fato é que
encontraram realmente o local. No fundo do mar, em proximidade
com a ilha. Sabe-se Salinas e outras localidades ficam dentro de uma
baia que é rasa, com profundidade de 5 a 30 metros no máximo. O
que acontece é que o local do “x” do tesouro foi encontrado em meio a
uma falha geológica, alguma coisa relacionada com as placas
tectônicas, que os ecobatímetros (aparelho que mede a profundidade)
dos barcos mediam cerca de 450m de profundidade. Nunca ninguém
desceu a essa profundidade. Quem escondeu o tesouro jamais queria
que o encontrassem.
Por aquela fortificação ser um lugar com sombra, nos sentamos
para descansar e preparar o tempero da moqueca de siri mole, que Boa
Morte tinha pegado no caminho. Depois de comer a moqueca
cozinhada pela lenha que achei e tomar vários copos de pinga fomos
realmente à proposta do passeio: pescar um cação ou peixe gigante
parecido e de nada servia quantidade de peixes pequenos; xangó,
peixe carrapato, chicharro e outros que seriam soltos, poderia ser um
peixe só, contanto que fosse imenso. Ao fim da pescaria pegamos uma
arraia média, que no momento julguei ser grande apenas com o intuito
de a tirarmos do mar.
Quando retornamos ao lugar onde preparamos a moqueca a
surpresa foi grande. Tomei um susto imenso quando vi um animal do
período pré-histórico ou jurássico ou nem uma coisa nem outra, na
minha frente. Embasbacados ficamos juntos ali, eu, Zé e aquele ser.
Era um guaiamum (espécie de caranguejo azul que não vive no
mangue, usando o mar apenas para reprodução). Tão gigantesco era
esse ser, impressionantemente colossal, com seu casco azulado que
tinha em torno de dois palmos grandes de comprimento. Apesar de
nativo da região, Boa Morte ficou verdadeiramente surpreendido com
o animal e após os primeiros segundos estável mostrou mais uma vez
sua perícia na arte de caçar e pulou de bunda em cima do casco do
bicho, prendendo-o junto a terra, fazendo um sanduíche com suas
nádegas. Logo após o embasbacamento cheguei e firmemente com
toda a força dos dois braços segurei a poã do fenomenal animal.
Impressionante era o tamanho da poã, a maior, que segura o alimento,
dava para colocar meu braço inteiro dentro e não dava para ele apertar,
enquanto a menor que serve para destrinchar o alimento, era maior do
que a de qualquer crustáceo já visto na terra. No caso do bicho a
menos maior. O guaiamum foi surpreendido comendo o resto de
azeite de dendê da nossa moqueca, notadamente os pedaços estavam
presos às poãs. Conseguimos capturar o guaiamum e mesmo assim ele
continuava com um incessante ruído em mastigar o dendê. O
carregamos juntos até o barco. Essa foi nossa maior pescaria.
Retornamos felizes com semblante de dever muito bem cumprido e a
viagem toda de volta demos grandes gargalhadas olhando para o
guaiamum e o guaiamum olhava também nitidamente e detidamente
em nossos olhos. Suas pupílas marrons cilíndricas e sua íris
esverdeada mostravam uma fronte séria. Sem medo, porém séria, não
sei o que se passava na cabeça daquele bicho naquela hora. O bicho
ficava apenas movendo suas mandíbulas freneticamente, simulando
dizer alguma escrotidão ao nosso respeito ou xingamentos dos mais
diversos ou estava apenas tentando limpar os resíduos de comida.
Sempre com o olhar sério, compenetrado a nos espreitar, talvez um
pouco cansado por causa da idade, pois o azul do seu casco já se
tornara um roxo e uns pêlos que ficam na fronte estavam sem cor e
com sinal de queda. A vida daquele guaiamum antes de nos conhecer
tinha um rumo bem oposto. Diferentemente dos diminutos da mesma
espécie, esse nosso guaiamum não tinha medo de sair da toca e
enquanto os outros botavam as patinhas de fora e ficavam cerca de
meia hora olhando para ver se havia predador com o maior receio,
esse não, saia mesmo, não tava nem aí, se achava o dono da Ilha do
Medo, é certo que foi imprudente a ponto de o capturarmos, ou será
que ele queria ser capturado para fazer uma possível fama na cidade?.
Nós encontramos marcas de combate em seu casco, talvez fora ferido
em combate por um porco selvagem ou algum daqueles tantos animais
abandonados que nos deparávamos na ilha. Sou contra rinha de
animais, mas adoraria ver um guaiamum furioso brigando contra um
cão da raça Pit-Bull.
Bem, ao avistar a praia de Salinas da Margarida meu camarada
fazia gestos para os que estavam na praia, como se estivesse próximo
a vencer uma grande competição. Assim que o barco parou e antes
mesmo de jogar a âncora Zé já carregava o bicho, que já estava meio
sonolento e preso a uma corda e Zé se encarregou de ter o mérito da
conquista, em parte, porque fui logo o alcançando e segurando uma
perninha do bicho, para assim garantir algum mérito. A aglomeração
de curiosos que se juntava no local era assustadora, freneticamente Zé
sussurrava-me, dizendo que estava na “mídia” e tinha “corum” e abria
um sorriso parecido de político. Todos queriam ver a excêntrica
atração digna de Circo de Solei, que havia naquele local. A
movimentação foi tanta que fecharam as portas do comércio e todos
deixaram seus afazeres para ver a estranha criatura, até um carro de
som noticiou a eventualidade. A notícia se espalhou, tiraram fotos
com o guaiamum e crianças fizeram carinho no casco do bichano e eu
passeei todo final de semana com o guaiamum, ao lado de curiosos.
Por incrível que pareça ele se acostumou a andar preso a uma corda
como de fosse um cão passeando com o dono. O guaiamum tornou-se
a atração da cidade.
Pois bem, estava eu de férias passeando com um guaiamum
gigantesco nunca visto na história da humanidade. Aquele ser iria com
certeza ser empalhado e parar num museu de fósseis e jamais ninguém
iria acreditar no interior que eu morava, um interior localizado no
interior dos interiores mesmo. Cidade chamada Canarana, perto de
Irecê, a capital do feijão e dos ovinos. O povo de lá não conhecia bem
o que era um caranguejo e quanto mais um crustáceo azul escuro
roxeado chamado guaiamum e imenso do jeito que era, gritariam logo
que era o chupa-cabras ou iriam logo criar semelhitude ou sincretismo
quase religioso com alguma lenda ou algo parecido. Poderiam
presumir de que se tratava de uma aranha gigante e tentariam matar ou
alguns mais radicais fanáticos acreditariam que se trataria da
incorporação do capeta na terra. Traria pânico geral na cidade. Foi em
virtude disso, que tive a maldita idéia de levar meu animalzinho
doméstico para o interior da Bahia e nem esperei os fotógrafos e
jornalistas chegarem para o entrevistar o bicho. Todos se despediram
do guaiamum e apertavam suas poãs, e botavam o braço inteiro no
meio da poã para atestar as dimensões e as menininhas beijavam seu
casco e todos o amavam e era querido por todos daquela ilha. Estava
eu torcendo para que os habitantes do interior brabo o aceitassem com
tamanha hospitalidade também.
No dia do meu retorno estava tudo preparado. Iria eu viajar
num ônibus de uma empresa a qual não quero mencionar e tive outra
idéia maldita em botar o guaiamum numa caixa de televisão próxima
ao meus pés. Minha burrice foi tanta, que em busca de um tratamento
VIP, coloquei uma cebola, uma banda de limão e um pouco de água
para o bichano. Ingenuamente acreditei que ele iria beber a água e
comer a comida. A viagem seguiu para o mencionado interior. Tarde
da noite viajavam o bicho e eu em ônibus Leito.
Ao lado da janela eu contemplava a noite e a mudança das
vegetações durante a viajem, as diferentes e remotas cidades e
vilarejos que passavamos. Eu sempre ligava a luizinha acima da
poltrona e abria a caixa aos meus pés para dar uma olhada no bichano.
Ele tranquilo, dormindo por seus olhos cilíndricos estarem abaixados e
relaxado com o ar condicionado, curtindo a soneca que tirava. Assisti
a um filme na televisão do ônibus e peguei no sono quando fui
surpreendido por ecoantes gritos. Ouvi muito barulho e até uma
senhora idosa mal equilibrada se esbarrou na minha poltrona. Via
gente correndo assustada ao adentrar o banheiro e cada curioso que ia
ver o que acontecia também corria atordoado. Fui curiosamente ver o
que estava acontecendo e ao passar por cada poltrona ouvia
comentários aturdidos, de gente nervosa. Algo assustador deveria estar
acontecendo. Cheguei com dificuldade ao banheiro, por haver varias
pessoas tumultuando o espaço me deparei com o guaiamum. Ele em
posição de ataque. Suas poãs arqueadas num ângulo de 180 graus,
olhando fixamente em meus olhos, sua fúria fez com que naquele
momento não me reconhecesse. Não adiantou nem falar para o
guaiamum que se tratava da minha pessoa, dizer que eramos amigos,
na tentativa que ele me reconhecesse, até disse: “sou eu, lembra?”,
mas ele não queria conversa, fui eu que o tirei daquela ilha, acometilhe
de uma fama ilusória e o larguei naquela delicada situação no
banheiro de um ônibus, tendo o desprazer de ouvir os mais variados
comentários desrespeitosos sobre sua figura. O guaiamum parecia
agora estar tomado por absoluta fúria e desferia ataques contra o ar
batendo as poãs, como se estivesse batendo palmas de desprezo. Eu
estava naquele momento sem saber o que fazer. Na minha primeira
tentativa de captura um desgraçado pulou em minha frente e
covardemente desferiu cinco marteladas no bicho. Assassinaram meu
guaiamum. Digo agora e sempre ao seu inerte esqueleto envernizado
em minha lustrosa mesa no interior de minha casa muito visitada: me
perdoe.