o contador de causos

O CONTADOR DE CAUSOS

Quando minha mãe entrava com aquele ar de quem ia me dizer algo que eu já esperava ouvir, me acomodava na cadeira de balanço, que ficava na sala, colocava a almofada no rosto e ela abaixava-se, com as mãos nos meus joelhos, dizia:

- Pensa que eu não sei que estas a rir?

- Quem, eu?

- Ora essa, sabe muito bem que as férias estão chegando, eu e seu pai vamos levá-la para a casa de seu avô Antônio. O que me diz?

Fazia uma ligeira pausa.

- A não ser que não queira ir.

Eu nem esperava que concluísse a frase.

- Ah mãezinha você é a melhor mãe do mundo, e enchia-lhe o pescoço de beijos.

A partir daquele momento contava as horas e o tão esperado dia chegava. Vestia-me com minha roupa de festa, tomava minha maleta azul com algumas roupas, minha boneca Rute e o meu lençol que jamais me separava dele (era um pedaço de tecido com grandes estampas, já surrado, e que me acompanhava dias e noites).

Meu pai me acomodava no carro, tomava a benção de minha mãe que, carinhosamente, depositava um beijo na minha testa.

No caminho ia olhando a paisagem, casas pequenas, algumas de taipa, outras de tijolos, bem distantes uma das outras. Mulheres com balaios na cabeça, crianças de pé no chão, homens com calças levantadas até o joelho, portando foices, cortavam capim na beira da estrada. Meu avô morava numa cidadezinha do interior de Pernambuco

O cheiro de terra molhada pelo orvalho da noite e o vento bailando com as folhas das árvores, os passarinhos que entoavam melodias encantadoras, me davam a sensação de paz, imagino que todo aquele cenário nas mãos de um “Da Vinci”, resultaria num quadro digno da apreciação dos maiores críticos e tomaria lugar de destaque nas mais renomadas galerias de arte.

Era admirando aquele espetáculo natural que chegávamos ao nosso destino. Minha avó nos aguardava ansiosa, ao adentrar na casa passava pelo jardim cheirando a rosas e meu avô vinha com dois pirulitos.

- Preta, veio passar uns dias com o vovô?

Era assim que, carinhosamente, me chamava. Eu estendia a mão para alcançar a guloseima e ele se esquivava, mostrando-me o rosto onde, barba por fazer e bigode quase todo branco, lhe davam um certo charme e dizia ele que nunca tirara o bigode, na verdade, jamais o tinha visto sem ele. Dava-lhe um beijo no rosto e ganhava a guloseima.

Quem parecia não apreciar minha presença naquela casa era o gato de estimação Nino, quando ele me via ouriçava o pelo e saia em disparada, é que me arranhava porque, normalmente, eu ameaçava sua tranquilidade, nada de cochilo em cima da velha máquina de costura, nem aqueles esfregões com o rabo peludo nas pernas alheias, meus gritinhos de medo o obrigavam a manter uma certa distância quando não era trancado no quarto dos fundos até que eu acalmasse.

Se tivesse oportunidade creio que me expulsava daquela casa por vingança. Eu não fazia por mal, tinha tanto medo dele, quanto talvez ele tivesse de mim.

Mas o que me encantava nas visitas a casa de meu avô eram as estórias contadas por ele “os causos”, jurava que era tudo verdade e uma sequência de nomes eram citados como testemunhas que confirmariam a veracidade dos fatos a quem ousasse lançar dúvidas.

Algumas de suas narrações não me deixavam dormir, o que custava a noite de sono de minha avó que, no outro dia esfregando os olhos, reclamava com vovô e dizia ser culpa dele a minha insônia e que da próxima vez seria ele que iria ficar as claras comigo. Ele ria-se .

-Bobagens mulher, é que a menina estranhou a cama ou estava tão feliz com o passeio que nem conseguiu dormir. Coisa de criança, eu também era assim quando fazia alguma viagem.

_Não diga? Viagem? Só se era para roça, a única viagem que você fazia, pensa que não sei, as poucas festas da redondeza você nunca estava lá, nem mesmo quando tornou-se rapaz.

_ Mas você gostou de mim, quando me viu passar para roça, ficou encantada.

_Quem eu? Por favor deixe de ser convencido e ríamos todos, em frente à mesa farta do desjejum.

Passava o dia entre folguedos de criança, mas, quando chegava a noite, após o jantar, eu ia arrastando meu lençol com a Rute nos braços.

Lá no quintal havia uma esteira estendida no chão e ali nos sentávamos e ficávamos a escutar aquelas estórias que raramente se repetiam.

Naquela noite ele começou a falar entusiasmado:

Sempre trabalhara na roça, mas naquele ano resolvera vender tecidos, era mascate, segundo ele, assim se denominavam os vendedores da porta em porta com seu cavalo” GABINETE’’ não sei em quem se inspirou, mas o pobre animal recebeu este nome. Vendia tecidos para as costureiras e senhoras da região, na época as lojas de roupas prontas eram muito raras e distantes, a comodidade que este serviço de porta a porta oferecia era bem aceita pela clientela, além do que toda moça prendada sabia costurar.

Às vezes meu avô andava o dia todo, voltando a noitinha e nos contou que foi advertido pelo Saldanha da mercearia, que lhe disse em tom grave:

Tome cuidado homem, lá por aquelas bandas, um moço prestes a casar-se com uma jovem daqueles lados, vindo da comemoração que antecede ao casamento , decerto havia sido atropelado por uma carroça rolou, bateu a cabeça na pedra que fica junto a cerca do Sítio do senhor Pedroso e morreu ali mesmo e bem perto da propriedade onde residia a moça filha do nogueira.

Após a noite trágica a moça que era bela como uma flor, passava horas a olhar-se no espelho, ficou louca a pobrezinha. Um dia ao amanhecer a procuraram em casa e pelos arredores sem a encontrar, quando um moleque chega correndo, quase sem fôlego e os suores escorrendo a empapa-lhe a camisa, batia na porta.

-Tem alguém em casa?

Ao que a mãe, Dona Aparecida, foi logo ver o que era.

_O que é moleque? Quem te mandou?

Venho da parte do Senhor vigário e a notícia não é das boas.

_Fale logo menino.

_ Quando o sacristão abriu as portas da igreja hoje cedo, para tocar o sino ás seis horas, uma moça vestida de noiva parecia dormir na calçada junto á porta . As feições são de sua filha.

A mãe caiu por terra gritando por Santa Terezinha das Rosas e os vizinhos e o marido a acudiram. Depois dirigiram-se a igreja e lá estava a menina vestida de noiva, “MORTA”, com um terço nas mãos. Dizem que morreu de tristeza.

Meu avô que escutava tudo com atenção fez ar de pouco caso.

-Pelo amor de DEUS, conte-me homem.

Verdade amigo, a noite, por volta das 18 horas, ninguém se atreve a passar na estrada onde o moço morreu, dissera-me que um casal de noivos aparece e, quem os vê desmaia de medo, os animais saem em disparada.

- Muito obrigado pelo aviso, mas não creio nessas bobagens que contam por aí só para meter medo.

Meu avô Antônio não esqueceu dessa história por uns dias, ria-se dela cada vez que lembrava, com o passar do tempo foi esquecendo. Em certa ocasião vendendo sua mercadoria e proseando com as senhoras, passou as horas e nem se deu conta do tempo decorrido.

Voltava tranquilamente, já por volta das 18 horas e ao passar pela estrada descrita pelo amigo como mal-assombrada, o cavalo assustou-se, levantou as patas dianteiras.

Meu avô caiu e Gabinete saiu em disparada, ao longe avistou um casal, ela vestida de noiva vindo em sua direção acompanhada por um rapaz de paletó preto, meu avô sentiu náuseas, tontura e nada viu além da escuridão.

No outro dia o filho do Senhor Gouveia, passando pela estrada, viu um homem estendido pelo chão, cuidou em socorrer e reconheceu o vovô que com um pequeno corte na testa, parecia imóvel.

Depois de ter sido conduzido a fazenda do Senhor Gouveia e receber os devidos cuidados, foi interrogado pelo dono da casa.

_O que se deu homem? Tomou uns goles ontem à noite? Resolveu pernoitar na estrada?

_Antes fosse homem. Eu só lembro do Gabinete levantando as patas dianteiras, cai e ele disparou . Tentei erguer-me, não tinha forças, então, uma moça e um rapaz vieram em minha direção. Daí apaguei. Será que estou vivo mesmo? Ou o Senhor é São Pedro.

-Que é isso homem. Então a pancada embaralhou o juízo?

-Todos me conhecem aqui na região.

-Ora, se morrestes, morremos os dois, se cá estamos a prosear.

Disse o homem preparando o cigarro, enrolando o fumo no papel.

-Vou mandar um empregado lhe levar em casa, a família já deve estar com cuidado, preocupados com vosmecê. O Sol já está alto, já devem estar pensando o pior.

O que se deu é que o amigo viu as almas da Rita e Ambrósio. Os noivos do além que ainda não descansaram em paz, e me disse repousando a mão pesada no ombro.

-Aconselho ao amigo para não mais ser perseguido por eles, mandar, celebrar, uma missa na intenção dessas pobres almas, uma não, duas missas.

-Duas?

-Sim, duas uma na igreja de Santa Terezinha, onde morreu a Rita, e outra na estrada, onde morreu o Ambrósio e onde os dois estão juntos.

Penso muito em vender minha fazenda mas estes dois impedem meu negócio, quando o interessado conhece a história, lança uma desculpa, promete voltar e nunca mais se vê o rastro por essas bandas, é certo que depois das 18 horas, ninguém se atreve a passar pela estrada. Casos houveram de pessoas que morreram não sei se de susto ou de medo.

Já falei inúmeras vezes que o caso só seria resolvido se celebrasse o casamento deles, aí na estrada, como se estivessem vivos. Quase convencemos o padre, mas, o bispo não aceitou, disse que eram crendices, coisas da cabeça do povo, mas quando convidado a passar pela estrada no horário que ocorriam as aparições ele se desculpou e se recusou, nós aqui ficamos tendo que conviver com estes fantasmas.

Fiquei perplexo : Eu que não acreditei e até zombei, os vi vindo em minha direção. E Gabinete? Meu DEUS, o que teria lhe acontecido?

O empregado trouxe o jipe, despedi-me do Senhor Gouveia, que ficou a seguir com o olhar, o carro que se distanciava, olhei e vi que o senhor Gouveia parecia distraído enrolado o bigode com uma das mãos.

Segui a viagem calado e pensativo. A pergunta ficava sem resposta da dúvida que me invadia a alma tomada pelos últimos acontecimentos.

Será que realmente aqueles dois se queriam tanto que desejavam casar-se depois de mortos? Ou será que se tomavam por vivos?

A única certeza é que as almas estavam inquietas, sem paz, diga-se de passagem, subtraiam paz de quem permanecia vivo.

Tomado por esses pensamentos e pelos solavancos do jipe que me jogava de um banco a outro e arremessavam minha cabeça contra o teto do veículo, segui viagem até chegar á minha casa, quando minha mãe nos avistou acorreu e antes mesmo que eu abrisse a boca para agradecer ao empregado do Senhor Gouveia, ela foi logo perguntando com o ar de quem estava brava além da conta.

-Onde estavas?

-Mãe...

-Me diga a verdade, estavas a te entreteres com mulheres á toa e deixastes tua mãe preocupada, esquecestes que tens mãe.

-Não mãe, foram os fantasmas da estrada.

Neste instante agradeci ao empregado com a intenção de que ele fosse embora e não presenciasse por mais nem um segundo aquela cena patética, pois além do interrogatório minha mãe ainda me batia com uma toalhinha que trazia sempre nos ombros para enxugar lhe os suores.

O rapaz com ar de riso acenou com a mão e me recomendou não esquecer das missas. Acenei com a cabeça positivamente e minha mãe continuava.

-Seu irresponsável, eu sei qual o fantasma que lhe aguardava na estrada, no mínimo uma doidivanas de saias, de boca e faces pintadas.

-Mãe era uma noiva e...

-Além de tudo é noiva, seu descarado, você está encrencado.

Ela me batia com mais raiva, então, de longe avistei o Gabinete, corri para ele. Alisei a crina ele me pareceu assustado mais feliz em me ver.

Talvez envergonhado de ter me deixado para trás, éramos amigos inseparáveis mas tudo bem, entendi que ele como eu, sentira medo e porque não pavor. Depois do susto, grande é a alegria em vê-lo novamente.

O tecido? Estava todo lá, Gabinete tinha chegado em casa com toda a mercadoria, isso diminuiu as chances de minha mãe pensar que, tínhamos sido atacados por ladrões. E quando me viu com um ferimento na cabeça pensou que tinha me metido em alguma confusão por causa de mulheres.

O fato é que no fim de tudo, ainda tive que pagar 3 contos de réis pelas missas e mais 1 conto para que o padre fosse dizer algumas palavras em latim na estrada onde apareciam as pobres almas.

Nunca mais ousei passar por lá, cortava caminho até durante o dia.

Não sei se as almas se casaram ou se ainda estão esperando alguém que as casem, mas não esqueci delas vindo em minha direção.

Meu avô ainda falava quando minha avó vinha trazendo chá, biscoitos, e um copo de leite quentinho para mim.

-Antônio e suas histórias...

-Mas essa é verdade, juro pela alma de minha mãezinha que a essas horas está no céu ao lado da virgem Maria , de quem era devota.

Se não acredita pergunte ao filho do Senhor Gouveia, o Eduardo que ainda vive.

-Como irei perguntar se nem sei o destino do moço? Isso lá são estórias que você conta como se fossem verdadeiras e a menina acredita.

-Mas essa é verdade, dizem também que aquela casinha ali no alto que está abandonada...

Não e Não, interrompeu minha avó, agora chega, vamos tomar o chá , a menina toma o leite e vamos dormir. Escutou bem? DORMIR...

Tudo bem. Boa noite preta, e sussurrou no meu ouvido:

Amanhã conto mais.

Quando me recolhi, não quis ficar sozinha, de mansinho tomei o travesseiro e o lençol e deitei junto a minha avó.

-Vó?

-O que foi?

-Eu não estou com medo, mas é que se os noivos resolverem vir aqui falar com o vovô sobre o casamento deles, eles podem errar de quarto, então achei melhor ficar aqui.

Minha avó suspirou, começou a reclamar com meu avô que dormia profundamente.

Então ela me abraçou e disse:

-Vamos rezar filhinha para que essas almas encontrem a paz.

-Vovó, a senhora também está com medo?

Ela arregalou os olhos.

_Quem? Eu? Medo de que? Fantasmas Não existem filhinha. Disse ela com voz trêmula, olhando para os lados.

Abraçadas adormecemos, foi sempre assim, minha avó sem admitir que sentia medo e meu avô jurando que os causos que ele contava eram verdadeiros.

Tempos tão bons aqueles, nunca esqueci aquelas estórias e vez ou outra lembro-me das pobres almas penadas e apaixonadas.

Polly Hundson