O MÊDO E A IMAGINAÇÃO
"... O MÊDO DE SOFRER É MAIOR QUE O PRÓPRIO SOFRIMENTO..." P. Coelho)
Quando cheguei em Ilha Solteira no início dos anos 70, a primeira pessoa que encontrei, com o perfil que servia prá ser meu amigo, foi José Eduardo Stamato. Embora sendo formado em Educação Física, exercia o cargo de Orientador Educacional, devido a sua vasta experiência no antigo Colégio Vocacional, extinto pela ditadura. O eixo fundamental da Filosofia do Colégio Vocacional era formar um cidadão crítico, capaz de atuar sobre a realidade existente. Embora sendo de grande cidade (Santo André) tinha paixão pelas coisas do interior. E eu fui a coisa mais parecida com o interior que ele encontrou. Um dia me apresentou um livrinho, já desgastado pelo tempo e pelo uso: “Selvas e Choças” de Othoniel Motta. Depois disso perdi o contato com a obra. Sumiu. Tempos depois, já na Direção do Colégio Euclides da Cunha, conversando com a Avó de um aluno, o assunto sobre Sertanejos veio à tona. Então ela disse que seu tio, Othoniel, tinha escrito um livro sobre o assunto e deu alguns detalhes sobre a Obra. Quando foi declinar o nome do livro, completei: “Selva e Choças”. Como o Senhor sabe? Então falei-lhe da obra lida e depois desaparecida. Pois eu ainda tenho um volume! E poucos dias depois entregou-me a Jóia. Pensei que ela acabaria esquecendo-o comigo. Fui até “desonesto” em não lembrar-lhe. Mas um dia apareceu para buscá-lo. Confessei a minha intenção. E ela, do alto de sua simpatia e sabedoria, afirmou: Vou tirar uma cópia para o senhor. Então pensei, nunca mais vou ver esta preciosidade! Passaram-se um ou dois anos, me aposentei e vim morar em Paraguaçu Paulista (região da Sorocabana), palco de quase todos os relatos do escrito. Certa feita, quando cheguei à tarde de Meu Reino Encantado, sítio que herdamos de meus pais, adquirido na enxada, sem o mínimo auxílio de lona preta, eis que me deparo com embrulho entregue pelo Correio. Remetente: Leda Cecília de Assunpção. Já imaginava o bicho que ia dar. E deu. Voltou às minhas mãos, já vestido com aparato de modernidades (cópia xerocada, encadernada com espiral e capa plastificada). A emoção foi muito forte de sorte que a respiração ficou entrecortada (não chorei porque este expediente já não é mais de meu uso).
Mas vamos a um “Causo” que retirei daquela preciosidade: “...Sertão das Minas Gerais. Euzébio, movido pelas mesmas necessidades de meus ancestrais, empreendeu uma viagem, em busca de terras boas, para comprar, porque ali a prática predatória da agricultura começava a dar sinais de cansaço do solo. Deveria entrar sertão adentro muitas léguas onde a terra fértil, coberta por floresta virgem, era abundante e barata. Depois de caminhar umas dez léguas no lombo de um burro baio, começa a ver o sol “barrer” a copa das árvores na direção do poente. Isso significava que a noite estava próxima. Estradinha profunda e estreita era tudo que há muito tinha passado e que provavelmente tinha pela frente. Eis que de repente, ao longe, uma casinha beira chão de pau-a-pique, coberta de sapé, se descortina. Quem poderia viver naqueles ermos e fazer o quê? Estranhos pensamentos começam a baixar. Podia ser um criminoso, fugitivo da justiça dos homens, que ali se sentia seguro pelo isolamento. Ao se aproximar, seu pressentimento ganhou força ao perceber que o habitante era um matuto solitário, branco, de barba sem trato, mas muito negra. Uma “prosa” poderia afastar a desconfiança. Depois um “boas tardes” percebeu que tudo piorou. A resposta foi abafada, quase um “grunhido” imperceptível. Fica longe a próxima moradia, indagou. Só sei que hoje “vancê num chega”, respondeu baixo e rouco. Então tenho de me apressar pra ganhar tempo. Só se isso for de seu gosto! “Se quisé pode posar aqui”. Isso soou pra Euzébio como o comentário de caçador quando depara com uma boa caça presa em sua ardilosa armadilha. Quantos viajantes já não teriam sucumbido ali como antas, queixadas e outros animais que morrem em cevas para tal fim preparadas. Enfim alternativa não havia. O que restava era enfrentar. Tristão_ chamava-se o anfitrião _ como todo habitante do sertão, em poucas palavras, ofereceu-lhe janta que foi prontamente recusada uma vez que o pavor era maior que a fome. O catre com colchão de palha de milho completou a oferenda. Este não teve como ser recusado. O matuto deitou-se no chão num velho couro de boi. E Euzébio, no catre cobriu-se com uma rota coberta, cuidando de ficar com sua garrucha, por baixo, engatilhada, prevenido contra qualquer eventualidade. Não pregou os olhos. O anfitrião mal deitou roncou gostoso. Um bom tempo depois, sem fazer o mínimo barulho, acendeu a lamparina, apanhou a faca que servia pra tudo e encaminhou-se em direção à cama. Quando debruçou sobre a visita, Euzébio puxou o gatilho. “Lenhou”. Gélido e petrificado esperou a estocada que acabaria com tudo. No entanto não veio. Vagarosamente Tristão retirou do colchão uma “paia” pra enrolar o fumo picado. Foram várias sorvidas no “paieiro”, soltando uma espessa nuvem de fumaça azul. Terminada a cerimônia, virou-se de lado, puxando sobre si a velha coberta, voltando a roncar, sintoma de um gostoso sono tranqüilo. (oldack/03/05/011). Tel. 018 3362 1477.X