Nas garras da Titica
Vai caçar lagartixa, seu Zé Preguiça, procurar ninho de borboleta no escuro pra ver se viram vaga-lume, seu Zé mulambo. Eu, morrendo de dor no pé da barriga, causada por uma manga verde que chupei... Chupei, chupei, lambi até o caroço porque tenho os olhos esbugalhados igualzinha a senhora sua mãe, que Deus já tenha por lá, tá me escutando... Tava morrendo de fome de tanta roupa que lavei carregando água na roladeira porque se fosse esperar por você, tava quarando no pingo do mei dia inté essas horas, porque né assim, em casa de lobisomem escrava é a vovozinha... Eu sempre fui uma mulher muito alvoroçada, do cabelo enrolada da raiz inté as pontas, mas comigo é assim: prego batido, ponta virada e esse diacho de bordado pra tirar minha paz, nem esses óculos que comprei na feira livre alivia a raiva que tenho de não mais poder enfiar a língua na agulha, ou, enfiar a linha da agulha. Lambo, que lambo, que lambo e nada, a linha fica babada, toda molenga e não consigo enfia-la no buraquinho da agulha. Vou já acender uma lamparina, deve de ser do escuro, já passa das quatro da tarde, daqui a pouco já é hora de tanger as galinha para o poleiro... Aqui, na mesa de minha casa, entre um gole e outro de café me pego a pensar nos tempos de infância e na minha prima Mafalda. Fazer o sinal da cruz três vezes porque morro de medo de pensar em quem já habita o andar de cima e como a amiga Esmeralda vive de agouro com as macumbagens dela, dizendo que sou média e posso receber uma entidade... Queria ver se eu fosse sortuda e acertasse na loteria, aí sim, aí sim, mas menina, colocaria logo uma chapa todinha em ouro e ia viver de sorriso, só pra matar as outras de inveja. Compraria dois metros de volta ao mundo, faria um vestido longo cheio de pedras e o tamanco encomendaria ao seu Pedro sapateiro. Colocaria os cabelos nos bobes e depois engomava com o ferro quente. Ia a igreja e o vigário ia querer, disso eu não tenho dúvidas, que eu sentasse na cadeira da frente, tenho certeza, aquilo é doido por dinheiro, duvido que ele mandasse eu matar galinha, pegar pelo pescoço, torcer até sangrar, aparar o sangue, arrancar pena uma por uma, depois pelar a galinha na água quente pra fazer cabidela na quermesse. Ia nada, seria mesmo uma daquelas metida a chique da mesa do leilão... Vou é lavar os olhos, já tocou sonhando demais e já tinha esquecido da prima Mafalda, irmã da Rosileide, filhas de minha tia Amaelinda, irmã do meu pai Afrânio e do meu tio Amâncio. Tio Amâncio, tia Amaelinda e papai Afrânio são os três filhos de meus avós: Alfaietes Norueguês e Francisca Norueguesa Norueguês. Todos nós nascemos e fomos criados no Sítio Azeiteiras, na casa grande de nosso tio Amâncio... Tão amarelada, a prima, os cabelos pareciam espigas de milho, de doer na vista. Todas nós bem penteadas e ela com o cabelo que parecia um balaio de tão enlinhado que era, ninguém podia tocar neles, nem ela, sofria de uma dor de cabeça crônica. Dormia e acordava com ela, ficava nela o dia inteirinho, era uma coisa e a gente tinha de aguentar a catinga de mijo quarado porque já tinha seus quinze anos e ainda mijava na rede. A lembrança que tenho da prima Mafalda é de seu sofrimento. Como sofreu aquela coitada. Ainda quando criança, no terreiro da casa, enquanto brincava na companhia dos primos e primas, sofreu um susto, um grande susto. O galo do sítio bateu as asas e cantou, cantou forte próximo a ela. Pega de surpresa, a menina sofreu aquele susto. Foi um alvoroço danado quando demos por conta os estrebuchamentos, a baba escorrendo pela boca, os olhos arrevirando e a língua enrolada. Acudimos em gritos pelos adultos, vieram todos num alvoroço só. Desse dia em diante a dor se instalou nela e nunca mais pode ser normal... Logo ao oito anos descobrimos a habilidade que tinha de bordar, era uma alegria só, os paninhos da igreja, os enxoval dos bebês, os enxovais das moças, todos passavam pelas mãos dela, mas também, no dia que não queria, quando tinha uma raiva ou se achava desapontada por alguém, o trabalho era desfeito, colocava tudo a perder, chegou até por fogo num enxoval inteiro de uma moça da cidade porque, segundo ela, quando bordava o lençol das núpcias, alvo que só o manto a virgem Maria, de repente viu um nódoa vermelha e uma imagens que dizia não ser mais pura a tal noiva da cidade. O casório foi desfeito e a prima Mafalda passou a ser vista como a menina que tinha visão. Gente dos quatro cantos vinham ver a tal moça, mas nunca conseguiam vê-la de perto, sempre ficava do lado de dentro da janela da casa grande, enrolada num lençol branco e rosas vermelhas no cabelo assanhado. Um dia se cansou de tudo isso e nunca mais disse uma só palavra. Ficou sem comer, foi secando, a cor de cabeça aumentando, aumentando também a barriga dela, nossa, era só dente grande, rosto magro, cabelo de fogo assanhado e a barriga daquele tamanho. Foi chamado o padre para dar a extrema unção, as promessas das beata em casa tempos depois, pela madrugada, depois de gritos e mais gritos, sem que ninguém esperasse, um gemido, um berro de criança era explodido debaixo do lençol branco da prima Mafalda, uma criança da cor de azeitona roxa. Os olhos do menino vendo a luz do mundo e os olhos da prima Mafalda se fechado para sempre. Ainda se podia ver lágrimas, como se fossem pedidos de perdão, a correrem pelos lados... O menino da cor de jambo foi batizado com o nome de Barnabé, que significa "filhos da consolação". Ninguém, até hoje, sabe quem é o pai, quem fez aquilo com a prima Mafalda. Se foi bondade ou caridade eu não sei, sei que foi o primeiro Norueguês nascido no sítio da Azeiteiras, por obra do divido ou divinizado pelas coceiras das carnes humanas. Um filho de moita, isso sim, que ninguém na época teve coragem de dizer. A prima Mafalda teve sepultamento de donzela santificada, enterrada na capela do sítio. A história foi encondida a sete chaves e lançada uma praga na família que quem abrisse a boca, seria castigado com um filho que iria nascer voando, de chifres e rabo, mas como já estou oca, tenho pra mais de meio século e meia metade de meio século, rasgo porque não tenho necessidade de levar pro túmulo essas verdades da vida, enquanto eu cá comigo, aqui, na mesa de minha casa, entre um gole e meio de café, lambo a linha pra enfiar no buraquinho a agulha pra continuar um bordado, iniciado há muito tempo pela prima Mafalda, morta de dor no pé da barriga por te chupado manga verde, no pingo do mei dia, lavando uma infinidade de roupa, esse filho de anum-preto, dorme, ronca peida como se não devesse a ninguém... Levanta Zé preguiça, levanta que já é de noite e não tem lenha pra fazer o fogo.