Seis da Tarde
Ciro passava pela praça, ao final de uma tarde ensolarada, quando viu alguns pombos arrulhando próximos aos canteiros. Tal cena lhe era familiar e habitual; parou sua bicicleta junto à praça e ficou observando algo que acontecia um pouco mais além de onde estava.
A praça fora recentemente reformada e as árvores, novas ainda, não ofereciam as sombras que encontramos costumeiramente numa praça do interior; assim, quando ele parou, o forte calor o incomodava e ele passava, constantemente, as mãos sobre a testa para diminuir o suor que lhe escorria, enquanto observava uma cena com especial interesse.
Sentado num banco, logo mais a frente, um senhor distribuía grãos de milho moído aos pombos. Não se contendo, Ciro saltou agilmente da bicicleta, deixando-a encostada junto ao meio-fio, enquanto dirigia-se ao senhor que estava sentado no banco da praça.
Pareciam conhecer-se; o senhor, ao vê-lo aproximar-se, levantou-se rapidamente do banco e deu-lhe as costas, numa autêntica fuga.
Um pipoqueiro que a tudo assistia de longe, riu-se; o ciclista, então, disparou algumas palavras em direção ao senhor que estava alimentando os pombos, aos gritos.
— Filho da puta! Porque tem que dar de comer a esses pombos do caralho!
Enervado, seus impropérios saíram-lhe com a raiva habitual com a qual o xingava. Suas palavras, apesar da grosseria, foram motivos de outros risos pelo pipoqueiro. Algumas crianças que ele atendia naquele momento, também riram-se, atraindo para eles a atenção do irritado sujeito.
— Estão rindo do que? Merda! Que hora difícil! Todo dia eu saio do serviço e acho esse cara com os pombos! Assim não dá!
Os meninos afastaram-se; dentre eles, Duda - até por ser mais velho – sobressaía-se com sua sonora gargalhada. No alto da sua curiosidade dos seus quinze anos, todos os dias aguardava pelo momento em que Ciro chegava; e torcia para que o velho reagisse às broncas do Ciro.
Sem entender com exatidão o motivo da revolta do moço com os pombos, todos riam pelo aparente nervosismo do moço. Ele tinha uma pele clara, com tons avermelhados pelo sol e, quando se enervava, o sangue lhe subia acentuando a vermelhidão. Exasperado em seu encontro vespertino, ele demonstrava todo o furor no rosto. A calva proeminente, apesar de sua pouca idade, também acompanhava o rosto e brilhava ao sol do fim de tarde.
Encerrado o banquete promovido por aquele senhor, os pombos agora bicavam junto às fendas de pequenas pedras que compunham mosaicos no chão da praça. O pipoqueiro, ao ver o moço irritado, começava a enxotá-los para que aquela fúria não fosse direcionada para ele.
Entre os desenhos do mosaico português no chão da praça e alheios àquela confusão, os pombos continuavam em sua procura por restos de milho de pipoca. O pipoqueiro os enxotava, sem muito sucesso, enquanto o moço aproximava-se.
— Tá vendo. Seu Nézio? Eu já avisei pra ele! Qualquer hora eu bato nele! Mas que cretino! Por que ele insiste em dar comida a esses pombos?
Enquanto Ciro falava, Nézio servia pipoca para uma menina. Terminou de servir a menina e respondeu.
— Ciro, não esquenta com isso... Deixa pra lá... Vocês vão brigar sem qualquer motivo! Ele é boa gente...
Todos os dias ele chegava ali, próximo das seis da tarde, e fazia pipoca aguardando a chegada das crianças naquela praça; nos últimos meses, de segunda a sexta-feira, às seis horas em ponto, a cena repete-se. Depois de Ciro soltar variados palavrões àquele senhor, vem conversar com Seu Nézio até acalmar-se.
— Acha que é pouco o estrago que esses pombos fazem?
Seu Nézio sorriu. Agora Ciro iria repetir a história que sempre lhe contava, sobre os problemas de saúde pública em razão do excessivo número de pombos que o centro da cidade tem. E assim aconteceu.
Mais uma vez, às seis da tarde, Seu Manoel ia embora correndo; ele morava numa rua próxima da praça e, depois de deixar a repartição em que trabalhava, punha-se naquela ali. Quase sempre sentado no mesmo banco, alimentava os pombos e a irritação de Ciro.
Nézio o via afastar-se e um sentimento estranho o tomou. O velho ia embora mais rapidamente que de costume e assustado para além do habitual. Isso não era bom sinal. Dizia-se, a boca pequena, que o velho era solitário e que, na sua casa, escutavam-se vozes no início da noite, tal como se ele falasse sozinho ou tivesse visitas noturnas habituais. Porém, há muitos anos não viam ninguém entrar ou sair daquela casa, exceto o próprio morador.
— Ciro, você conhece alguém que já esteve na casa do Seu Manoel?
— Não...
— É triste... Também não conheço ninguém.
Ficaram em silêncio, como se estivessem imaginando como seria a vida do velho. Contavam alguns que ele tivera família; porém, logo depois que nasceu o seu segundo filho, a esposa faleceu. Após esse fato, o filho mais velho foi levado por uma prima da sua mulher para morar com ela na Capital. O recém nascido, falavam, era filho de outro e pelo pai verdadeiro foi criado. Naquela época, Seu Manoel ainda era jovem. Porém, dizia-se que a tristeza o envelheceu mais rapidamente que seus amigos. Homem de poucas palavras, ele não desenvolvia amizades sequer no trabalho.
Após Ciro conversar um pouco com Nézio, ele foi embora. Chegando à sua casa, que distava duas quadras para além da praça, ele ainda pensava no velho alimentando os pombos e nos comentários que Nézio fizera. Uma certa curiosidade nasceu nele sobre a vida de Seu Manoel.
A esposa de Ciro chegara há pouco e agitava-se entre o fogão, a mesa e a pia, preparando o jantar. Ele aproximou-se dela, encostou-se nela por trás e beijou-a próximo ao pescoço. Ela contorceu-se um pouco, arrepiada; voltou-se a ele com um meio sorriso.
— Oi, Ciro! Chegou animado hoje!
— Hã-ran...
Beijou-a rapidamente nos lábios e a abraçou. Ela estava com um avental e com as mãos ocupadas com duas batatas. Assim, logo que Ciro aproximou-se mais dela as batatas foram deixadas de lado, para recebê-lo. Mas, seu olhar e atenção ainda mantinham-se nas panelas fumegantes e nas batatas.
— Meu amor... Já estava com saudade!
— Minha querida Rose... Não quer deixar para fazer o jantar depois? - Ele sorriu, maliciosamente, enquanto a acariciou por cima das calças justas que ela trajava.
— Não! Mais tarde a gente se diverte...
Por sobre a camisa dela Ciro via o colo farto e bem delineado pelo tecido amarelo claro, estimulando-o. Ele sentou-se numa cadeira, junto à mesa da cozinha, e começou a contar a sua saga vespertina para Rose.
Mal ele começou a falar sobre os pombos, Rose virou-se e o interrompeu, irritada.
— Por que não deixa pra lá o assunto desses pombos? Eu até concordo que seja uma lei municipal e que você, como Fiscal Sanitário, tenha obrigação de acompanhar o que acontece. Mas, pra que se desgastar tanto? Todos os dias você me conta a mesma história!
— Ora! O velho é abusado! Ele fica esperando eu passar por lá; logo depois que me vê, joga comida para os pombos! É pura provocação! Ainda bato no sujeito!
— Ciro... Por que não passa por outra rua? Assim, não se sentirá provocado!
— Ah! Tá bom... O meu caminho é aquele, é o de sempre... Por que devo mudá-lo? Não faz sentido isso! Eu vou é notificar o sujeito, outra vez!
Ele foi para a sala, deixando-a com as tarefas do jantar. O jovem casal ainda não tinha filhos, apesar das inúmeras tentativas de concepção. Toda vez que Rose via o marido irritado, passava-lhe um rápido pensamento sobre essa questão. Se tivessem filhos, provavelmente a rotina deles seria outra: assim, quando ele voltasse do trabalho e encontrasse-os brincando pela casa, distrair-se-ia mais rapidamente; talvez isso o deixasse menos irritado. Mas, ela tinha um problema em seu útero que não colaborava para a fixação do óvulo. Assim, mesmo que houvesse a fecundação, o óvulo não seguiria adiante. Eram remotíssimas as chances de ela engravidar.
A maioria das casas que compunham o centro daquela cidade pequena era antiga e, em razão do passado colonial, a maioria delas dividiam as mesmas paredes. Explica-se: dos antigos casarões de abastadas e antigas famílias, as partilhas por heranças e outros motivos levaram às sucessivas divisões das casas, surgindo pequenas residências com telhados contíguos. Assim, os ruídos de uma residência avançavam para a outra através das paredes ou pelo forro. Com um pouco de astúcia e habilidade, um vizinho mais interessado poderia ouvir o que se passava na casa ao lado.
Uma idosa e solitária senhora habitava a casa vizinha a de Ciro e, lembremos, ela tinha por hábito manter-se informada sobre a vida alheia. Enquanto Ciro e Rose conversavam do outro lado, ela colocava um copo junto à parede, na tentativa de escutar melhor o que eles diziam. Nos últimos finais de tarde, ao perceber rumores na casa vizinha, Filomena trazia para perto da parede uma cadeira e acomodava-se nela; auxiliada pelo copo junto à parede, esforçava-se para distinguir as palavras dos vizinhos dos demais sons da casa. Há tempos não dispunha de outra ocupação fora o hábito de acompanhar a vida dos outros, considerando que tinha até mesmo uma empregada que lhe cuidava da casa. Algumas pessoas falavam que ela lhe dava alguns trocados a mais, em paga por informações. Tamanha curiosidade lhe rendia uma reputação muito própria naquela cidadela.
Lembremos de Nézio tentando argumentar com Ciro; a teima com que o Fiscal Sanitário desejava ir à forra com Seu Manoel era enorme. Quando viu Ciro afastar-se, seus pensamentos remeteram-no em direção a tempos longínquos, onde ele e Seu Manoel eram ainda jovens. Foram muito amigos na juventude; quando se tornaram adultos, distanciaram-se. Não havia muito que fazer sobre isso; ele o sabia de longa data. Afinal, tal como um jardim, se não cultivarmos as amizades elas são tomadas por ervas daninhas. O belo jardim da amizade está sujeito a essas pragas; elas apodrecem a amizade pela raiz, tal como formigas alimentando-se dos bulbos das flores.
Homem voltado aos estudos e leituras variadas, o nosso pipoqueiro foi, há muito, empregado da empresa de telefonia. Aposentou-se e deprimiu-se seguidamente pelo ócio daquela condição de aposentado, até que, passado alguns meses das suas férias forçadas, – como ele dizia da sua aposentadoria –, comprou um carrinho de pipoca e divertia-se, ao tempo que se mantinha ocupado diariamente. Alternando com outro carrinho de algodão doce, ocupava as tardes nos intervalos de horários das escolas e os começos de noite nas praças.
Seu Nézio tinha por Seu Manoel uma enorme preocupação. A título de esclarecimento, me cabe lembrar o motivo do distanciamento entre ambos. Afinal, foram grandes amigos e a história que determinou o fim daquela amizade merece ser lembrada; passaram-se trinta anos dos acontecimentos e os fatos ainda ardiam no coração de cada um, como sigo narrando.
Haviam os dois jurado amizade pela vida toda, ao final dos estudos do antigo curso colegial; de profissão, ambos procuraram caminhos distintos. Afeito aos estudos, Nézio logo foi selecionado pela companhia de telefonia, enquanto Manoel esmerava numa profissão não menos digna, dedicando-se como garçom num restaurante. Ele esteve na capital, durante um estágio de um ano para aprender a profissão, e voltou com um certificado de conclusão. Isso o qualificava para chegar com honrarias ao emprego que desejou, de Maitre no Grande Hotel Central, e assim aconteceu.
Tempos depois que Manoel começar a trabalhar no restaurante do Hotel, uma recepcionista foi contratada. Mal se encontraram pela primeira vez e surgiu uma longa conversa, estimulada por Manoel, que deixou aflorado o sentimento dele. Assim, em pouco tempo eram vistos juntos caminhando pelas praças da cidade.
Alguns meses depois, os novos técnicos de telefonia estavam expandindo a rede e, não sei ao certo se foi por azar ou por sorte, Nézio lá estava supervisionando os serviços de implantação da nova rede lá no hotel em que Manoel trabalhava. Entre um retorno e outro ao hotel, chamou-lhe a atenção uma vistosa recepcionista. Eu poderia resumir a história e dizer, bem às claras, que brigaram por causa dela... Mas, os detalhes são interessantes e vou continuar para vermos como isso aconteceu.
Nézio encostou-se ao balcão do hotel a prancheta com as anotações dos pares, cabos e outros dados das linhas dos telefones; precisava de um esclarecimento da direção para continuar a instalar ramais nos apartamentos. Então, dirigiu-se à recepcionista e, tão logo acomodou a prancheta sobre a mesa, a chamou.
— Moça... Como é mesmo o seu nome?
— Cléo. O que deseja Senhor...?
Os olhares cruzaram-se e, enquanto isso, a resposta demorou um pouco para surgir.
— Nézio... - disse ele, ligeiramente pálido.
— Ok, Senhor Nézio, o que deseja?
As pupilas de ambos dilatavam-se, como se procurassem enxergar melhor um ao outro; pareciam ter o nítido desejo de aprofundar àquela conversa. Mas, a imperiosa necessidade de cumprir o serviço o levou apenas à afirmação seguinte.
— Eu preciso falar com alguém da direção sobre esses ramais...
Ao que ela, não menos abalada, respondeu com trêmula voz.
— Espera que vou chamar o gerente.
Ela levantou-se e, como as linhas internas estavam em reparos, foi caminhando em direção ao interior para chamar o gerente; Nézio a viu afastar-se, balançando seus lisos cabelos castanhos escuros caídos pelos ombros. O uniforme de camisa branca, semitransparente, acompanhado de uma saia azul pouco acima do joelho, marcava-lhe as acentuadas curvas de uma alegre e juvenil morenice.
Quando ela voltou, acompanhada do gerente do hotel, ele ainda estava sob o efeito da visão que tivera dela. Pareceu-lhe que ela percebeu os seus olhares, quando retribuiu com um maroto e comprometedor sorriso.
O gerente chamou-lhe a atenção, tocando em seu ombro, e não lhe restou alternativa se não voltar seus pensamentos aos cabos telefônicos. Após algumas explicações ao gerente, o qual gerou mudanças no projeto original, Nézio continuou seus serviços distante fisicamente da recepcionista. Após o serviço, foi para sua casa e banhou-se; aguardava que o amigo por ali passasse, para tomarem algumas cervejas juntos. Se tivessem que beber algo juntos nessa semana, seria hoje. Era a folga do amigo e combinaram de véspera jogar sinuca e beber cerveja no clube que habitualmente freqüentavam.
Manoel chegou à casa de Nézio e o chamou, às seis da tarde como de hábito; notava-se em sua voz uma pressa não habitual. Quando Nézio saiu ao seu encontro, sentiu o forte cheiro de colônia lavanda que Manoel passara. Logo deduziu...
— Ah! Sim... Hoje tem mulherio! Arranjou uma nova namorada? Manoel riu-se, fartamente, e confirmou com a cabeça.
— Espero que ela leve uma amiga! Se não for assim, ficarei de vela...
— Isso eu não sei. Eu a convidei para irmos ao clube, para a sinuca e cerveja, mas não lhe disse que levaria um amigo... Não deu tempo! - Voltou a rir e continuou.
— Na verdade, há muito quero sair com ela e ela sempre recusou meus convites. Somente hoje ela aceitou ir ao clube...
Nézio retraiu-se um pouco. Porém, logo conversavam amenidades e, em breve, chegaram ao clube. Quando entraram, de costa para a entrada - e de olho na pista de boliche -, em uma das mesas os cabelos castanhos escuros, duma certa silhueta feminina, despertou os sentidos de ambos. Aproximando-se da mesa, ela levantou-se e abraçou Manoel, cumprimentando-o com um beijo estalado nos lábios. Nézio teve um súbito mal estar. De costas para a entrada, ela não observara com antecedência o acompanhante do namorado. Quando Cléo o viu, sentiu as suas pernas bambas, sem forças, e subitamente sentou-se, enquanto falava.
— Vamos... sentar-se. Acomodemos-nos.
Distraído com o barulho das pistas do boliche que havia próximo, bem como do burburinho vindo das mesas de sinuca, Manoel mal percebeu a inflexão da voz e o susto que tomou conta de Cléo. Era a segunda vez que ela via Nézio e era tomada da mesma sensação que teve na primeira, lá na recepção do hotel. Assim, a noite correu tranqüila para Manoel, apesar de estranhar a quietude do amigo. Jamais o vira tão calado e sem atenção no jogo. Pela primeira vez ganhava três partidas seguidas de sinuca, justamente do parceiro predileto.
Duas horas depois, acabrunhado, Nézio despedia-se e deixava no clube o jovem casal; levava consigo a tristeza de sentir uma paixão injusta. Porque apaixonar-se exatamente pela namorada do seu melhor amigo? Isso era o que de pior poderia acontecer! Assim, gradativamente foi recusando convites do Manoel, procurando afastar-se de ambos. Do melhor amigo e da morena que despertou de forma única os seus sentimentos. Muitos anos passaram-se sem que ambos trocassem mais palavras, como se nunca tivessem nutrido qualquer amizade, exceto numa ocasião específica em que tiveram que, forçosamente, conversar. Mais tarde contarei; por enquanto, saibamos que assim deu-se o início do afastamento de ambos.
Voltemos à praça, onde Duda ria-se abertamente. Não conseguia compreender o porquê de Ciro ficar tão exasperado por Seu Manoel; afinal, eram inocentes farelos de milho aos pombos, nada mais que isso. Se o Ciro procurasse conversar, seu padrinho entenderia? Ao pensar na cena do velho teimoso falando com Ciro, ria-se novamente. Afinal, jamais vira um velho tão cabeça dura quanto o seu padrinho!
Enquanto via Seu Manoel afastar-se, sentou-se num banco próximo ao carrinho de pipoca para observar a conversa entre o pai e Ciro. Não conseguia compreender. Afinal, o pai não falava com o seu padrinho há quase quinze anos e, no entanto, quando Ciro vinha ameaçá-lo, ele saia em velada porém eficiente defesa. Aguardava que Seu Manoel se distanciasse e então falava para acalmar Ciro. A cena vinha repetindo-se há algumas semanas e, quando a situação parecia prestes a explodir entre ambos, seu pai apaziguava Ciro, enquanto Seu Manoel fugia com passos rápidos.
Naquela tarde - não sei exatamente o motivo - uma pergunta ressurgiu nos pensamentos de Duda. Como e por qual razão Seu Manoel era seu padrinho se eles não se falavam? Enquanto Ciro, montado em sua bicicleta, afastava-se em direção contrária a de Seu Manoel, Duda perguntou ao pai.
— Pai... Posso fazer aquela pergunta de novo? Sinto que ainda falta alguma explicação...
Nézio o olhou e, fechando o semblante, amoldou um sorriso amarelo.
— O que mais quer saber'?
— Quero que me diga por qual motivo Seu Manoel é meu padrinho...
— Já disse, e vou repetir... Ele foi o meu melhor amigo. Isso não basta?
— Eu não entendo! Como ele foi teu amigo e não se falam há tanto tempo? Conte-me o que aconteceu.
Nézio fechou-se; um menino veio pedir-lhe pipoca. Suas pipocas, acompanhadas de pequenos nacos de toucinho, despertavam o paladar das crianças e até mesmo dos adultos.
Duda desviou a atenção para uma mocinha que passava do outro lado da praça, acompanhada de uma amiga. Os três estudavam juntos, na mesma turma do colégio.
— Pai, vou conversar com elas e volto logo.
Duda seguiu rumo às amigas, munido com uma curiosidade incomum. Lembrou-se que uma delas era vizinha do Seu Manoel. Talvez pudesse dar alguma pista. Ele aproximou-se delas e iniciou uma conversa amena, até que se dirigiu àquela para a qual tinha uma pergunta.
— Mary, me diz uma coisa... Conhece o vizinho da sua casa Seu Manoel?
— Claro, Duda! Conheço como todos, só de vista. Jamais o vi conversar com alguém no portão ou receber visitas... Algumas vezes, ele diz um “bom tarde” ou “boa noite”... Por que?
— Curiosidade. Apenas isso.
Ao responder, Duda desviou o olhar. Mary era uma obcecada pelo significado dos olhares alheios. Raramente deixava o sentido do olhar de um interlocutor escapar-lhe. Então, ao perceber a evasiva de Duda, bolou uma estratégia para descobrir o motivo do seu interesse. Desejava conhecer o que ele ocultava quando desviou o olhar. Então, ela sugeriu.
— Vamos lá em casa? Nós três? Temos que terminar aquela tarefa da escola para entregar amanhã. Aproveitemos a próxima hora para isso... O que acham?
A proposta foi aceita pelos três e juntos seguiram para a casa de Mary. A proximidade que ele teria da casa do velho instigava a imaginação de Duda. Afinal, por todo o tempo de menino, dividiu com os colegas as lendas que corriam sobre o velho-não-tão-velho-quase-caduco e que sabia-se, falava sozinho em todo início de noite. E a noite avizinhava-se. Por outro lado, Mary sentia-se próxima de saber a verdade a respeito da pergunta de Duda. Como pêndulo fiel da balança e ao sabor do vento, Cristina seguia aos dois sem qualquer noção do que lhes aconteceria.
Ao entrarem na casa de Mary, Duda espiou rapidamente a entrada da casa ao lado; transpirava ao abandono. Numa primeira olhada, pensava-se que não haveria ali qualquer habitante. Entretanto, caro leitor, Seu Manoel residia naquele local. Como disse antes, naquele centro a maioria das casas era pegada em demasia uma da outra, quase sempre a dividir o mesmo telhado. Não era diferente naquele trecho da rua em que moravam.
Logo que adentraram à casa de Mary, ela os convidou para tomar um refresco; assentaram-se os três numa mesa disposta na cozinha. Naquela parte da casa não havia forro. Mary os convidara para cozinha com um nítido propósito, como veremos.
— Já faço o refresco...
Pegou alguns limões e passou a espremê-los com as mãos sobre uma peneira disposta sobre uma jarra branca. De onde Duda estava, não se contendo, disparou um alto riso...
— Não é mais fácil você usar o espremedor elétrico? - disse ele, em meio às risadas.
Mary o olhou e colocou o dedo indicador atravessado sobre a sua boca, pedindo-lhe silêncio.
— Que foi? - murmurou ele.
— Chiiiiuu... Fique quietinho! - disse ela em voz baixa; repetia o gesto insistindo no pedido de silêncio.
Cristina empalideceu; arregalou os olhos e falou com voz trêmula e baixa.
— Mary, você sabe que isso me dá medo!
— Bobinha... É só o maluco do Seu Manoel... Fiquemos em silêncio, para ver se entendemos alguma coisa...
Duda nunca presenciara tais coisas. Também o assustavam os rumores vindos da casa do Seu Manoel, perpassando pelo forro da sua casa e chegando à cozinha da casa de Mary através do telhado contíguo.
Num ínfimo de voz, ele disse para as duas.
— Mas... O velhote não mora sozinho? Com quem diabos ele fala? Mary o olhou e respondeu, aos seus ouvidos.
— É por isso que não quis falar na praça. É esquisito demais. Podem achar que estou mentindo.
— Ah! Legal... - Ele a interrompeu.
Ela chegou mais perto. Seus olhares invadiram-se, inundando-os com algo que se diz como ter "atingido o coração". Porém, a sensação que tiveram foi muito mais próxima ao abdome, num ligeiro tremor que os deixou em seguida com a boca seca. Os lábios dela nunca lhe pareceram tão bonitos... Bom, como essa é uma outra história, voltemos à cozinha da casa dela e à inusitada situação.
— E então? Duda? - Mary abriu um sorriso de esperteza
— Era disso que queria saber? Como pego numa armadilha, Duda procurou esquivar-se; mas, a lança já o havia atingido em cheio.
— Ok... Você estava certa! - disparou ele e soltou a sua aberta gargalhada. Os três riram juntos e, após tomarem mais alguns goles do suco de limão, instalou-se naquela cozinha um incômodo silêncio; porém, era o adequado às suas curiosidades.
Ah! Preciso contar algumas coisas sobre a Cléo. Após aquela noite no clube, em que jogaram sinuca e beberam cerveja, Cléo viu Nézio a cada minuto mais triste até que seguiu embora, para muito além da tristeza; pareceu-lhe deprimido. Passaram apenas uma hora juntos e ela achou muito estranho o comportamento de Nézio. Perguntou ao Manoel o que teria acontecido com ele.
— Pelo que eu percebi, nada de mais... Acho que ficou triste porque estava sem companhia... Da próxima vez, eu aviso antes que você estará conosco.
Apesar de fazer tal pergunta, Cléo não estava propriamente esperando uma resposta. Ela havia percebido que Nézio desviava-se, constantemente, do seu incisivo olhar. Durante aquela hora em que estiveram juntos, a todo tempo ele evitou dirigir-se a ela; mais tarde ela compreendeu que ele buscava evitar falar com ela para não demonstrar o sentimento que lhe surgiu quando a conheceu.
Nos três anos que se seguiram àquela noite, Manoel não percebeu o amigo distanciar-se; afinal, o namoro com Cléo tomava-lhe todo o tempo. Esmerava-se em cuidados de toda a forma, até que a família dela consentiu o noivado para o final daqueles três anos, apoiando-os na íntegra. Nézio, a esse tempo, fora transferido para outra cidade e lá permanecia solitário, dedicando-se aos serviços enquanto mantinha em silêncio o seu coração. Finalmente, quatro anos depois daquela situação no clube, Cléo e Manoel casaram-se. Enviaram um convite ao Nézio, para a cerimônia do casório; ele não compareceu. Manoel, nessa especial ocasião, sentia-se triste por não ter ao lado o seu amigo. Mas, a resposta ao convite, enviado por telegrama, o deixou mais tranqüilo.
"caro amigo pt lamento não posso ir pt muitos compromissos onde moro pt desejo felicidades pt"
Cléo, ao ler o telegrama, emocionou-se. Lembrou-se do olhar de Nézio, naquele balcão da recepção do hotel, há quatro anos passados. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto, sendo aparada involuntariamente pelo telegrama. Algo havia, em meio àquelas palavras, que a fez lembrar do que vira no olhar de Nézio.
Enfim, eles casaram-se. Às vezes, sentia em seus sonhos o olhar de Nézio observando-a. Acordava assustada olhando para Manoel; e, tal como estivesse traindo os seus próprios sentimentos, pensava por qual motivo deixou a a situação chegar naquele ponto. A cada dia estava mais convencida de que amava ao Nézio e não ao marido. De certa maneira, o sentimento que nutriu por Manoel, em reposta à abnegada dedicação que ele tinha por ela, começou a mudar. Com o tempo, o excesso de gentileza dele passou a ser algo que a incomodava. Talvez achasse que não merecia tais excessos de gentileza. Ou, ainda se merecesse, não considerava correto que alguém lhe fosse tão subserviente. Ela procurava por Nézio nos olhos de Manoel, e isso a deixava irritada; em alguns momentos íntimos na cama, imaginava-se com Nézio. Mas, casara-se com Manoel e deveria respeitá-lo.
Tiveram o primeiro filho após quatro anos de casamento. Enquanto o tempo passava, ao lado de Manoel, Cléo perdeu a alegria de viver e estava sempre irritada, enervando-se com facilidade. O bebê trouxe-lhe, durante os quatro primeiros anos de vida dele, uma alegria muito própria; ela direcionou todos os seus sentimentos ao filho e distanciou-se em definitivo de Manoel. Ele passou a sofrer calado, sem expectativa de encontrar uma solução, tendo isso em sua vida como um mal incurável, amando-a e sabendo que ela não tinha por ele qualquer sentimento. Uma sensação de tristeza e incapacidade tolhia qualquer atitude dele.
Seis anos depois, Nézio retornou à cidade por seu próprio pedido à empresa de telefonia. Ele continuava solteiro; namorava por alguns tempos uma moça e depois outra, e assim seguia a vida. Não conseguiu atar o seu coração a nenhuma outra mulher. Quando elas pediam-lhe um pouco mais de comprometimento, esquivava-se e as deixava solitárias. Tornou-se um solteirão convicto, acreditando que somente assim poderia aproveitar o melhor da vida, ao tempo que se permitia uma chance para esquecer Cléo.
Acreditando, enfim, que ficou no passado o sentimento por Cléo, logo que chegou à cidade procurou pela casa do Manoel. Pretendia ter uma reaproximação imediata com o amigo. Desejava resgatar a amizade a qualquer custo.
Cléo arrumava algumas roupas do Júnior, numa das gavetas da cômoda do menino, quando ouviu algumas batidas secas na porta. Como não esperava por ninguém e, provavelmente, seria algum vendedor, foi a contragosto até a porta. Olhando pela portinhola ao centro da porta, emudeceu. Abriu vagarosamente a porta, enquanto procurava sentar-se numa poltrona que estava próxima, pois lhe faltaram forças nas pernas quando o viu.
— Oi, Cléo! Tudo bom? - Disse ele, abrindo um sorriso de felicidade.
Apesar de emocionado pelo reencontro, suas palavras surgiram claras aos ouvidos de Cléo. Ela olhou-o e respondeu.
— Oi, Nézio... Sente-se. Você... está bem?
Perfeitamente à vontade, a sós na sala, os olhares encontraram-se e sorrisos abriram-se nas duas fisionomias. Uma irresistível atração ressurgiu entre eles. Ela levantou-se; ele a acompanhou. Abraçaram-se e procuraram pelos lábios um do outro. Um beijo esperado por dez anos aconteceu, sem muitas preliminares.
Após o beijo longo e apaixonado, soltaram-se; ambos abaixaram as cabeças e sentaram-se. Um diante do outro, olhos nos olhos...
— Cléo, me perdoe... Eu juro que vim até aqui apenas para reatar a amizade com o Manoel... Não desejava que isso acontecesse...
Seus olhos embargados brilhavam, anunciando lágrimas que não demoraram a escorrer sobre o seu queixo. Ela o olhava, também aflita.
— Eu amo você. E tenho certeza absoluta disso, mesmo que tenhamos tido tão pouco contato.
Ele abaixou outra vez a cabeça. Procurando evitar o assunto, perguntou sobre Manoel.
— Ele está em inspeção pela zona rural. Ele trabalha como Agente Sanitário e passa alguns dias fora, pelas fazendas. Temos um filho, o Júnior, e que também não está em casa. Foi para a Capital; passará uma semana das férias lá, com minha prima...
Nézio aquietou-se e olhava-a novamente. Ela aproximou-se e disse-lhe, após um rápido beijo.
— Fique aqui comigo hoje. Ao menos essa noite. São seis horas; logo escurece... Por muitas vezes sonhei com uma ocasião em que estivéssemos juntinhos...
Nézio não se opôs. O desejo de ambos sobrepujou todas as barreiras. Passaram uma noite inteira em mútuo oferecimento de carinhos; ao amanhecer, concluíram que nunca tiveram uma noite tão linda em suas vidas. No dia seguinte, logo cedo, Nézio foi ao hotel. Pegou as malas que havia deixado na véspera e voltou para a cidade onde trabalhava antes, desistindo da transferência.
Uma vez que tenhamos lembrado do motivo que levou ao fim da amizade entre eles, explica-se porque Seu Manoel levantou-se apressadamente do banco, sem mesmo despedir-se de Nézio. Mas, havia outro motivo; ele não desejava ter qualquer confronto com Ciro. Afinal, ele já o ameaçara com a polícia. Seu Manoel não perdoava a ingratidão de Ciro. Fora ele quem o iniciara nos serviços da repartição e agora, a despeito de tudo, intimava-o por alimentar os pombos! Quanta ousadia! Ainda vinha lhe dizer que ele foi deixado de lado, na repartição, justamente porque não se interessava em conhecer as novas regras. Ah! Para Seu Manoel isso era um desatino. “Onde já se viu? Esse moleque, mal saído das fraldas!”. E ainda mais pensava ele, “fui eu quem ensinou o serviço para ele!”.
Caminhando a passos rápidos, apesar da idade, Seu Manoel chegou à sua casa. Acabou de entrar e começou a falar.
— Oi, meu amor! Tudo bom? Teve um bom dia, minha querida?
Em sua mente, produziam-se as respostas às suas perguntas, como segue.
— Oi, seu besta, chifrudo!
— Não precisa ofender, minha querida.... respondeu ele.
— Que mais quer que eu diga? Já disse que amo outro e você não quer me deixar viver em paz... Que mais quer ouvir?
Entre uma frase sua e outra, passavam-se alguns segundos. Para ele, as respostas eram específicas e a sonoridade imaginada vinha acompanhada da irritação peculiar. Para os meninos que acompanhavam na cozinha da casa vizinha, nada era mais estranho do que ouvir as frases soltas de Seu Manoel. O “diálogo” se repetia todos os dias; para Mary, nunca fizera sentido tais afirmações, até aquele dia. Hoje, porém, julgava estar mais próxima de descobrir o significado. Bastava ele chegar em casa, pouco depois das seis da tarde, que de sua cozinha Mary ouvia quase sempre as mesmas frases.
— Vai... deixa de bobagens, minha linda. Onde está o Júnior? Tá na rua de novo?
— Você esqueceu que mandou ele pra Capital? Você decidiu isso, e sozinho... Nem mesmo perguntou a opinião da minha mãe! Agora, o menino sequer te reconhece...
Ele reproduzia, com a sua consciência abalada, as respostas às suas solitárias perguntas.
— Quando você se deitou com ele, não tinha idéia do quanto me faria sofrer...
— E quando você, Seu Manoel, insistiu em casar-se comigo, pensou em minha felicidade? Não, queria apenas a tua própria satisfação! Eu era bonita, não? A minha família tinha dinheiro, não é? Que mais você queria?
— Mas, você não precisava me trair...
— Na verdade, quem traiu quem? Você traiu a si mesmo, quando decidiu casar com alguém que não te amava! Não se lembra que conversamos sobre isso antes do casamento, depois que chegou aquele telegrama?
— Eu disse para você que ele não te queria, que a deixou para mim...
Seu Manoel ria-se em alto volume, a ponto de ser escutado nitidamente na cozinha da casa vizinha, onde Duda, Mary e Cristina bebiam suco de limão.
— Você pagou com a vida! Eu a envenenei e faria isso mil vezes, sua cadela!
— Seu calhorda, filho da puta!
— E o filho de vocês, nasceu bonito, forte... Testemunhando meu chifre... Só não o matei de pena. Eu via o rosto do sujeito nele... Como não era possível ficar com o bebê, não foi melhor entregá-lo para o pai cuidar?
— Seu besta! Vou seguir assombrando a sua vida até você ficar maluco de vez!
Os meninos tiraram uma conclusão imediata; acharam, enfim, que realmente o velho era insano. O que poderia ser feito?
Duda ainda ficou ali mais um tempo, quieto, ouvindo mais algumas palavras. Nada conclusivo, pensou ele. Seu Manoel prosseguia em seu diálogo com o oculto, enquanto esperava por ouvir algo que colaborasse para responder àquela pergunta que fez ao pai.
— O que mais eu poderia ter feito? Aguardar que todos na cidade me chamassem de corno? Era isso o que desejava?
— Você poderia ter me deixado viver; eu iria embora, à procura dele.
— Ah! Então, eu ficaria com a fama de corno manso e abandonado? Era isso o que desejava para mim?
— Não, seu besta! Você se preocupa tanto com as aparências que ainda não percebeu que todos te chamam de velho maluco?
— Sua vaca!
Lá na casa de Ciro, ou melhor, na casa ao lado da casa de Ciro, Dona Filomena estava com um copo colado à parede; de dentro da sua casa ela procurava escutar o diálogo entre Ciro e Rose. Afinal, por esses dias Ciro andava encrencado com Seu Manoel. Se tinha algo que a velha desejava, até mais do que o ar que ela respirava, era esclarecer o mistério que rondava a vida do endoidecido Seu Manoel. Há quinze anos uma morte inesperada ocorreu envolvendo Seu Manoel; porém, não era uma morte qualquer. Era a da única e querida filha da Dona Filomena. Desde então, o amargor tomou conta da sua vida; ela passou a viver em razão de comentar tudo que fosse possível sobre a vida alheia. Seu Manoel, com o tempo, de querido genro passou a desafeto e depois a suspeito da morte da filha dela, com certas propriedades como já vimos. Dona Filomena tinha uma interpretação muito pessoal de alguns fatos.
Não contendo mais a curiosidade, expandida pelo que ouviu na casa de Mary, Duda resolveu inquirir Dona Filomena; afinal, como mãe da falecida mulher de Seu Manoel poderia saber de mais alguma coisa. Chegou à casa dela; após bater, foi convidado para entrar. Sentou-se e tentou falar algo. A velha era assustadora. Ele a olhou e sentiu um arrepio. Emudeceu ao procurar palavras para lhe dizer. Numa voz quase tétrica, rouca em exato acordo com o aspecto cavernoso que a velha tinha, ela antecipou-se e disse a ele:
— Aguardava que você viesse aqui algum dia...
— Por que? - No semblante de Duda um certo pavor instalava-se.
— Bom... Tenho muito que te dizer e espero que seu pai não se zangue; você precisa saber toda a verdade. Se chegou até aqui, é porque está na hora de saber...
— Tá bom... - Ele empalideceu ligeiramente e, em seguida, aquietou seu coração e a ouviu claramente.
— Eu sempre visitava a minha filha e, como mãe, acabei descobrindo a farsa imposta pelo casamento; eu soube dos sentimentos dela por outro e, no entanto, acreditava que casamentos são para durarem. Achava que servem para manterem as pessoas juntas, enquanto elas passam pelas dificuldades da vida. Assim, da mesma maneira que não tive um casamento feliz - casei-me com o primeiro namorado, um caixeiro viajante que agradou mais ao meu pai do que a mim -, não imaginava que felicidade fosse algo para existir num casamento. Se era bom ou ruim, o tempo a tudo iria curar, anulando nossas individualidades e trazendo olhares sombrios aos finais das nossas vidas.
Ela parou um pouco de falar, como se procurasse lembrar de algo em específico; tossiu e cuspiu na parede. A velha arquejava; respirou fundo e continuou com sua rouca voz.
— Houve uma inesperada visita de uma pessoa, em nossa cidade, e depois disso notei que a minha filha estava muito feliz. Eu não a vi sorrir por muitos anos, exceto ocasionalmente com algumas das peripécias do filho e especialmente naquele dia. Na verdade, Cléo era consumida por uma apatia profunda junto a Manoel. Que remédio havia? Já estava casada e assim o era. Quando nasceu o segundo filho, notamos que ele tinha no rosto uma pinta marrom no rosto, tal como essa que você e seu pai têm, no mesmo lugar...
— Como assim? Meu pai sempre disse que minha mãe morreu logo depois do parto! - Duda empalideceu, tomado pelo susto da revelação. Então, Dona Filomena concluiu:
— A sua mãe amou profundamente o seu pai... E a prova viva disso é você! Neste teu olhar cor de mel, você leva contigo o amor que a minha filha teve por teu pai.