INTUIÇÕES DE GERVÁSIO
 
Num sei dizer por que tem assomado as lembranças dos tempos qu’eu morava no sítio, lá pras bandas de Jardim Bonito. Lugar tranqüilo, bom de trabalhar. Outro dia mesmo peguei uma lágrima que teimava em escorregar dos olhos, que num teve jeito, sô! Tempo bão aquele! Me lembro bem dum dia, assunta só, num gosto de contar não por que já começam a fazer troça de mim, que eu to inventando, essas coisas...  mas eu vou contar!
Foi assim que comprei o sítio, com porteira fechada. Gervásio não gosta quando falo assim, porque ele era o caseiro e cuidava da lida com os animais e das plantações. “Hum... Mas num sô vaca nem porco pra ser vendido não!” – refutava ele. Com a convivência nos tornamos grandes amigos, mas Gervásio sempre foi um enigma. Mudava de humor constantemente. Tanto podia estar alegre como de acordar de mau humor e assim ficar o dia inteiro. Ficava sério quando vinham pedir ajuda pra “rezar” uma ou outra criação, ou mesmo espantar cobra de pasto. Vez ou outra nos surpreendia com suas tiradas e deboches, ou interpretava os sinais da natureza e fazia previsões quase que impossíveis; e dava certinho, na pinta, como ele mesmo dizia. Num certo dia lá, fazia pouco tempo que o conhecia, ele me chama pra ir junto, numa benzeção de pasto dum vizinho, retirado légua e meia dali. Eu, montado num burro, muito bom de monta, e ele, montado no Carvão, um cavalo, inteiro, de pelagem escura, quase preto total, mas muito arisco. Só aceitava monta de Gervásio. Era perigoso até chegar perto, de tão arisco. Lá fomos, proseando. Pelo metade do caminho, na porteira de entrada das terras do finado Divino. “Vamo vê sô cê sabe abri porteira montado...” – instiga ele. Eu encosto o burro de lado e tento puxar, mas estava muito pesada. Gervásio dá uma risada e vem me ajudar. “Ela sempre foi muito pesada mesmo. Todo mundo apanha dela na primeira vez – hehehe” – Aquela risadinha dele me soou como deboche. Mas tudo bem. Continuamos. Chegamos no destino ele fez lá as rezas dele andando pelo pasto, parando num ponto ou noutro, enquanto eu observada cá de longe. Terminado, foi só o tempo prum cafezinho e rumamos pra trás, porque tava armando um temporal, e ia escurecer logo. Proseamos pouco. Não posso dizer o que se passava pela cabeça dele. Quando chegamos na tal porteira, do sítio do finado Divino já não se via mais o sol, mas ainda havia claridade, mais que o normal. Faltando uns cinco metros pra encostar nela, ela começa a abrir, sozinha... “Nhéééréréré....” – Aquele barulho das dobradiças me deixou ainda mais assustado. Olhei pro Gervásio e não vi em seu rosto nenhuma reação ao fato. Ele apenas tirou o chapéu e levou ao peito. Ao passar pela porteira diz: “Obrigado!” Eu, sem entender nada e todo arrepiado, procurei me manter firme, mas tava co’arlindo na mão. O burro fica inquieto e chego a espora na barriga dele que salta à frente. Cinco ou seis metros depois eu olho pra trás e vejo Gervásio parado, chapéu ao peito, olhando pro nada. O cavalo dele tranquilo. Estanco o burro e ainda co’arlindo na mão, fico sem saber o que fazer. Pouco depois, alguns segundos talvez, pra mim foi uma eternidade, Gervásio retoma o caminho em minha direção. Volta a colocar o chapéu. A porteira começa a fechar... Aparentemente sem ninguém empurrar. A porteira bate no mourão tudo fica escuro. Era noite. Gelei nessa hora. Gervásio percebe que eu ia fugir e fala: “Espera!” - Aproxima-se de mim que só não havia me borrado todo porque não tinha como sair nada, nem agulha cirúrgica passava por ali – “Espera. Temo otra coisa pra fazê. Vô precisá de sua ajuda”. Não fiz nenhuma contestação. Melhor ficar junto do que desembestado por aí. Começava a chover e não havíamos levado nenhuma capa. Conseguíamos enxergar melhor quando relampejava. Cem metros adiante pegamos uma estradinha à direita e seguimos nela por um bom tempo. Quando já me estava me considerando um pouco mais seguro, apesar do temporal, já não estava mais tão tenso, Gervásio estaca de novo. Meu coração volta a disparar e fico novamente co’arlindo na mão. Ele olha prum lado e pro outro. Diz pra si mesmo: “Mas não há nada aqui...” – Pergunto o que é que estávamos fazendo ali e ele não responde. Anda mais alguns metros e continua procurando. “Vamos entrar aqui. Me segue!” A gente sai da estrada e atravessa um pequeno campo de vassourinha, e, logo depois vimos a luz de uma lamparina, logo depois da moita de bambu. Entre um relâmpago e outro deu pra ver o casebre. Pequena, quatro cômodos, talvez, uma cobertura ao lado, onde havia um velho Fiat 147. Lá dentro, ouvia-se alguns lamentos e crianças que choravam. “Ô de casa!” Grita Gervásio – “É de paz!” A porta se abre e Gervásio entra enquanto eu fico cuidando dos animais. Carvão começa a ficar inquieto, mas o burro ao lado dele lhe dá um pouco de segurança. Gervásio volta pouco depois. “A coisa ta preta. Tem uma mulher pra parir aqui e as coisa tão se complicando. Ela não pode ficar aqui.” Pergunto o que a gente pode fazer. “Olha, tem mais quatro crianças aqui que num podemos deixar sozinhas e uma delas ta com febre alta. Melhor cê ir com a mãe no carro pro hospital qu’eu vô buscar umas ervas e fazer uma pra criança. Logo logo ela ‘tará boa.” Falei pra ele que talvez aquela lata velha não fosse pegar, que devia estar parada a muito tempo, devia estar sem bateria. “Eu aposto co’cê que pega! Vamo, ajuda leva a mulher pro carro”. Acomodamos da melhor forma possível aquela mulher no banco traseiro do Fiat. A filha mais velha iria nos acompanhar. Tinha 10 anos. Entro no carro e pergunto pra ela quanto tempo aquele carro estava parado. Ela responde: “Hum... Meu pai morreu há seis meses... e fazia um ano que ele não ‘ligava ele’”. Meu Deus! Cruzei os dedos e girei a chave. Pegou de primeira. Olhei pra Gervásio, que sem nenhuma expressão de espanto grita: “Vai logo!” Chegando na frente do hospital, faltando poucos metros, o carro para, sem gasolina. Corro até a entrada e grito por socorro e logo vêm dar assistência. Algum tempo depois de espera, eu, Gabriela - a menina que nos acompanhava e uma conhecida da mãe dela, que havia ido cuidar de uma queimadura na mão, estávamos sentados, aguardando alguma notícia, uma médica nos procura e diz: “Correu tudo bem. Tivemos que fazer cezariana. A criança estava em posição transversal. Ainda bem que vieram a tempo. Um pouco mais e  poderia complicar”. Tudo resolvido, resolvi voltar e tranquilizar os outros filhos que ficaram. A amiga da mãe se dispôs a ficar com eles até a alta do hospital. Saí e logo achei uma Kombi de aluguel. Perfeito! – pensei. Gervásio, que nos recebe na porta, nos convida a entrar. As crianças, em silêncio, estavam tranqüilas; a menor cochilava numa poltrona velha. Haviam comido bem. Dou a boa notícia a todos. Gervásio vai até a soleira. “É menino! Estão todos bem”. A vela que estava aos pés duma imagem de Nossa Senhora Aparecida se aviva. Eu olho pros garotos e pra Gervásio. Uma leve brisa é sentida, suave, nem tão forte assim, e a vela se apaga. “Todos pro carro. ‘Cês vão com o tio ali até a cidade e amanhã vão podê conhecê o irmãozinho do’ceis. Eu e o moço ali vamos ficar e seguir pras nossas casas”. Pouco depois estávamos cavalgando pro sítio. Eu louco pra tomar uma sopa quente e me enfiar debaixo das cobertas. O tempo passa e eu não esqueço daquele dia. Passei muitas outras vezes por aquela porteira. Nunca mais a vi abrir sozinha. E sempre que passava por ali me fazia de firme. Por fora confiante, mas na verdade sempre co’arlindo na mão.


 


 
Walter Peixoto
06/11/2013
 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 06/11/2013
Reeditado em 06/11/2013
Código do texto: T4559393
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