CAUSOS DE TONICO LOUREIRO:
De mula-sem-cabeça a  lobisomem 
          
Meu avô paterno, Antônio da Silva Loureiro Pinheiro dos Santos, era filho de imigrantes portugueses que se fixaram no Rio Grande do Sul na região de Bagé lá pelo limiar do século 19, não vieram jovens, e tiveram suas "raspas do tacho" por lá e logo faleceram. Meu avô se transferiu do Sul ainda pequeno para Itararé-SP, quase em cima da divisa com o Paraná. Ali se fixaram num sítio da família chamado Pinheiral, tanto que a casa-sede ficava em meio a um bosque de araucárias, que nesse tempo formavam florestas. Hoje em processo de extinção.
          Pois bem, meu pai Arnaldo, o caçula do segundo casamento de meu avô, filho da velhice de Antônio Loureiro - o Tonico Loureiro - conta que andava como rabicho com o pai, sempre na garupa do cavalo, e o velho enchia a cabecinha dele com histórias que acreditava que existiam: todos os personagens do folclore brasileiro: mula-sem-cabeça, saci-pererê, caipora, lobisomem, boitatá etc. E, pior é que os via, ora um ora outro. Claro, meu pai sem discernimento algum, acreditava no pai, mas meu tio Tonico dos Santos, caçula do primeiro casamento - Antônio dos Santos, por isso não assinava Filho, desacreditava o velho para o pequeno Arnaldo dizendo: - É tudo mentira de papai seu bobo, não existe nada disso, é ele que acredita!
Interessante é contar que o Velho Tonico Loureiro, dos dois casamentos teve 14 filhos e trabalhava muito, sem tempo de levar as crianças que todo ano nasciam para registrar, então passava um compadre, que já batizara antes outro filho, ou outro compadre em potencial e ele pedia para um e outro, registrar a criança na cidade. No caminho, na charrete, o casal de compadres misturava o monte de sobrenomes de portuguêses e mandava brasa em um ou outro. Daí um se chamava Antônio dos Santos, outra Laudelina Loureiro, outro Abelardo Santos Pinheiro, outra Anezita Pinheiro da Silva, meu pai Arnaldo dos Santos e acreditem: como minha avó, mãe de meu pai, se chamava Maria Das Dores Camargo de Albuquerque (tinha os cabelos ruivos olhos cinzas e era muito sardenta) uns e outros dos filhos  portavam em seus nomes o sobrenome dela, alternando com os do marido, por exemplo, meu tio Manuel da Silva Pinheiro de Albuquerque e outro Joaquim de Camargo Albuquerque dos Santos. Fiz uma árvore genealógica rápida para ver como se portavam essas famílias mescladas de raças e crendices dos fins do século 19 e início do século 20. Vamos rápido ao causo em questão:
           O velho era então muito medroso, gostava de contar causos de assombração quando com a sua turma de velhos amigos, e o horário nobre era a noite, ao luar, porque luz naquele tempo era manga de colete, ainda mais no bairro (agrupamento de casas da colônia em torno do casarão da venda). O bairrinho se chama Bairro do Pinheiral e ficava numa clareira do bosque, era um aglomerado de casinhas em torno do que fora o solitário casarão velho, adquirido por um morador da cidade, onde montou a "Venda", aquela que tem um pouco de tudo para cada necessidade do pessoal da roça: desde pinga, salame e mortadela, toucinho, passando pelo fumo de corda até enxadas e demais ferramentas, sem faltar os potes, pratos e moringas de barro. Ela tinha uma escadaria onde o pessoal se sentava para a "sessão terror", onde os causos "acontecidos" de arrepiar os cabelos começavam, sem arremedo. Parece que gostavam dos calafrios que sentiam, os velhos amigos e outros não tão velhos assim. Gostavam mais das noites de lua cheia, porque clareava mais o caminho de volta até as porteiras dos sítios que se avizinhavam. Só que tinha mais perigo de aparecer o lobisomem...!! Patota completa, lá vai causo: a  da "Moça de Branco" no cemiteriozinho de beira-de- estrada´, a qual passeava entre os velhos e corroidos túmulos; a "Mão que Saia para Fora da Terra" na cova, "A Cruz que Voava por Cima do Cemitério"...! Esgotado o rol do cemitério, iam para o Saci que emaranhou toda a crina do cavalo do Zé do Pito e deixou o cavalo em pandarecos de cansaço de tanto correr pelos pastos com o saci em riba. - Meu tio Tonico perguntou um dia como o saci fazia para enforquilhar-se em riba do cavalo, e o velho que era bravo e não largava o relho, se pega o Tonico, o estragava! De outra feita Tonico perguntou a meu avô, como a mula sem cabeça pastava...teve que correr e passar três dias no bosque comendo pinhão, se volta...!! Mas, havia um causo, não sei porquê, que tinham dele mais medo, era o da mulher que morreu de uma doença estranha, misteriosa, com seus quatro filhinhos; uma escadinha de 6 anos para baixo, ali mesmo naquele bairro numa casinha afastada. Diziam que ela tinha virado uma porca e atrás dela ia a vara dos quatro filhos virados leitões. O medo talvez proviesse da proximidade da personagem e deles a terem conhecido. Sei lá!
          Nessa noite, a sessão terror foi pesada e o velho Tonico Loureiro, meu avô, voltava para casa pisando alto e assobiando! Sabem aquele assobiozinho de medo...!? Pois é, não é que ele vê saindo de uma macega uma porca e seus leitõezinhos de pelo avermelhado, e... a mulher, sabia que era ruiva!? - Uma ressalva: aliás pelo Bairro Pinheiral tinham muitos ruivos, uma genética européia, principalmente na ala dos Albuquerques: minha avó era de lá, e pelo lado dela todos tinham cabelos, do cobre ao cor-de-abóbora. Chegou até meu filho, uma sobrinha e meu neto, que nasceram "foguinhos".
          Então tinha meu avô diante dele uma certeza. Pronto! Tá aí "A Coisa"!! A vara iniciou cruzar sua frente. Ele não esperou mais nada, seus 62 anos viraram 20 e ele sai numa carreira tão grande, que quase quebra as pernas de tanto correr em rumo contrário ao que ia! Ele, no escuro da noite de lua, não vendo praticamente nada na sombra de um bambuzal  - não viu uma mula parada pastando sossegadamente, e, dá com a cara bem no traseiro da cavalgadura; em cheio na espiga do rabo áspero do infeliz semovente. De imediato um grito desusado de horror que teve como resposta terrível coice do musculoso animal, que o joga longe para trás. No pavor, meu avô se levanta e se volta sem conferir nada  em desabalada carreira, numa juventude arrancada num sei de onde, em direção à porteira do Pinheiral, casa onde chega esbaforido, dizendo sem fôlego, assistido pela vó Das Dores, que perguntava: - Que foi homem, viu fantasma é...? - Cêis nem magina (gaguejando)...vi o fantasma da Ritinha que virou porca e seus filhotes - Cruz em Credo, Figa-Rabuda - saí correndo de volta pros lados da Venda do Janota (apelido do dono) e depois, dá té medo de contar, cêis num sabe...dei de cara com o lobisomem, aquele bicho peludo com mais de dois metros de altura, o coisa ruim, mas lutamos, dei uns bons socos no bicho senão ele tinha me devorado e ele num tranco de soco, me jogou longe, quando levantei ele fugiu de medo, o covarde... Meu tio Tonico que tinha arrebanhado a porca e os leitões, lá pra baixo do sítio Rosal e os tangeu  com uma vara de guanxuma que cortou com o canivete, se escondeu e viu a troça, não aguentou ver o susto e o medo do velho, temendo se revelar prestes a estourar de rir, voltou correndo para casa cortando caminho. Não viu  o desfecho com a mula pertencente ao filho do Zé Pereira de Aquino ali do sítio Lagoa Parda.
          Noutro dia, depois do almoço, um domingo, recebeu a visita do compadre José Pereira de Aquino do sítio Lagoa Parda, que, na noite anterior foi o último a se despedir de Tonico Loureiro, e não estando ainda muito longe, lua clara, ouviu o tropel de meu avô aos gritos e correndo fugir da porca e seus filhotes que eram  lá de outro compadre do Rosal. Viu ainda, do ponto onde estava, quando compadre Loureiro enfiou a cara no traseiro da mula de nome Mimosa.
Inocententemente, sem malícia pergunta no meio do pessoal de vovô:
- "Coméquié" cumpadre Tunico "num si machucô onte di noite" com o coice da Mimosa, a mula do Miguelzinho?? Tamém ocê enfiou a fuça no rabo dela...queria o quê cumpadre, era coice mêmo...! E pior que riu; riram todos, só vovó Das Dores que não...! Respeito é bom e faz bem pros dentes, ela sempre dizia.
          Vovô, Antonio da Silva Loureiro Pinheiro dos Santos, o Tonico Loureiro, bateu com o rodilho do relho nas botas de cano alto com as bombachas por dentro, como quem diz: - O primeiro que continuar a rir vai entrar na guasca, vou arrancar o couro das costas - como sempre falava!
          Todo mundo calou o bico. Ficou um silêncio de morte. Compadre Pereira percebeu o "pisão fora do estribo" que deu, desconversou, até tropeçou no guri foguinho, caçula,  que era meu pai. A família se dispersou cada um por um lado procurando o que fazer. Meu tio Tonico antes de explodir de tanto segurar o riso, correu para seu esconderijo no bosque de pinheiral e destampou uma risada de espantar zorrilho!
    
Mauro Martins Santos
Enviado por Mauro Martins Santos em 30/10/2013
Reeditado em 03/03/2015
Código do texto: T4548039
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