Imagem Google. "Enterro na roça" Obra em madeira do artesão Antônio Oliveira.
Naquele tempo, era comum as crianças participarem de todos os acontecimentos. A pouca idade nunca foi impedimento para que acompanhassem os adultos a velórios ou enterros. A vida era muito simples, sem preocupações com problemas psicológicos.
Numa manhã, apareceu um peão galopando estrada afora, contava aos vizinhos, da morte do patrão. Havia ido até a cidade caçar recurso, mas, quando o doutor chegou, Sô Hermógenes havia morrido. Tinha acordado com uma dor no peito e nada cercou!
Foi um alvoroço na fazenda. Em pouco tempo a casa estava cheia. O curral abarrotado de cavalos arreados; charretes e muita gente chegando. Seu Hermógenes era além de muito rico, pessoa boa, caridosa e amiga de todos naquele lugar.
Mariinha, sempre muito curiosa, fez questão de acompanhar os avós até à casa do fazendeiro. Ao longe se ouvia marteladas. Eram os carapinas fazendo o caixão ali mesmo na propriedade da família. Ao chegar juntou-se a outras crianças e foram ver de onde vinha o barulho.
Foi a primeira e única vez que ela presenciou aquela cena. Numa varanda ao lado do curral, havia tábuas de madeira espalhadas. Avistou o marceneiro, um homem já idoso e ficou a observá-lo de longe. Com destreza pregava o tecido roxo na madeira enfeitando a tampa do caixão com galões de seda amarelos. Acenou-lhe permitindo que ela se aproximasse e logo disse:
— Está vendo isso menina? Essa é a casa para onde todo mundo vai um dia, seja rico, seja pobre, não tem escapatória...A não ser que queira ficar para semente.
Naquela hora, Mariinha não entendeu bem os motivos de alguém vir a ser ocupante de semelhante casa. Muitos anos depois quando se lembra de sua ingenuidade, sente um calafrio. Na verdade, aquele dia ela preferiu a segunda opção. Queria mesmo ser uma semente.
Na enorme sala de assoalho, uma porção de velas queimava num canto; um cheiro enjoativo de flores murchas recendia pelo ambiente. O caixão do fazendeiro jazia no banco grande de madeira, rodeado pelos parentes. No quarto, a viúva, de cama não aguentava mais de tanto chorar e desmaiar, rodeada pelas filhas e noras que choravam também.
Mariinha e outras crianças foram até a cozinha, onde um bando de mulheres lidava num enorme fogão à lenha, repleto de panelas, chaleiras e caldeirões. Preparava-se um banquete com muito arroz, feijão tropeiro, leitão assado, macarronada, galinhada. Era costume servir uma refeição reforçada a quem ia passar a noite no velório e aos homens que carregariam o banguê com o defunto até a cidade, longe da fazenda, mais de uma légua.
Tarde da noite, lá fora um garrafão de cachaça servia para esquentar o frio dos homens que contavam causos, escorados nas tábuas do curral. Peneiras que quitandas de toda espécie, circulavam pelos cômodos da casa e varandas, iluminados por velas e lamparinas de querosene.
Anunciou-se que seria rezado um terço, na encomendação da alma do Sô Hermógenes. Povo se ajuntou na sala, no meio do reboliço apareceram as crianças que brincavam lá fora. Curiosas, se ajeitaram ao redor, para espiar aquela imagem pálida e imóvel ali dentro daquela “caixa”. Por alma de quem todo mundo rezaria.
Enquanto “roía” um enorme biscoito de polvilho, Mariinha observava o velho Hermógenes. Trajando um terno escuro, calçado de botinas novas, jazia sob um véu de renda, com enfeites dourados na ponta. Envoltas num rosário de contas, as mãos cruzadas no peito. Não se soube de onde a menina tirou a ideia de levantar o véu e colocar um biscoito de polvilho daqueles grandes, bem entre as mãos do defunto.
Em meio às orações todos se entreolhavam, mas ninguém teve expediente para suspender o véu e tirar a quitanda. Uma das tias da menina puxou-a pelo braço levando-a até um canto. Passou uma descompostura daquelas e ainda a amedrontou dizendo que o finado voltaria para assombrá-la e puxar seu pé toda noite, caso ela não consertasse o malfeito.
O terço quase no final; sob os olhares curiosos da multidão, Mariinha entrou na sala, aproximou-se do caixão, retirando o que havia colocado nas mãos do extinto. Olhou-o dizendo com voz trêmula:
—Discurpa aí, Sô Hermoge, foi sem querê... Num vem puxá meu pé não...
Saiu do velório correndo e atirou o pedaço de biscoito ao primeiro cão que encontrou lá fora.
Texto escrito para o Exercício Criativo. Tema: "Desculpa aí." Acesse o link e leia todos os participantes.
http://encantodasletras.50webs.com/desculpaai.htm
Naquele tempo, era comum as crianças participarem de todos os acontecimentos. A pouca idade nunca foi impedimento para que acompanhassem os adultos a velórios ou enterros. A vida era muito simples, sem preocupações com problemas psicológicos.
Numa manhã, apareceu um peão galopando estrada afora, contava aos vizinhos, da morte do patrão. Havia ido até a cidade caçar recurso, mas, quando o doutor chegou, Sô Hermógenes havia morrido. Tinha acordado com uma dor no peito e nada cercou!
Foi um alvoroço na fazenda. Em pouco tempo a casa estava cheia. O curral abarrotado de cavalos arreados; charretes e muita gente chegando. Seu Hermógenes era além de muito rico, pessoa boa, caridosa e amiga de todos naquele lugar.
Mariinha, sempre muito curiosa, fez questão de acompanhar os avós até à casa do fazendeiro. Ao longe se ouvia marteladas. Eram os carapinas fazendo o caixão ali mesmo na propriedade da família. Ao chegar juntou-se a outras crianças e foram ver de onde vinha o barulho.
Foi a primeira e única vez que ela presenciou aquela cena. Numa varanda ao lado do curral, havia tábuas de madeira espalhadas. Avistou o marceneiro, um homem já idoso e ficou a observá-lo de longe. Com destreza pregava o tecido roxo na madeira enfeitando a tampa do caixão com galões de seda amarelos. Acenou-lhe permitindo que ela se aproximasse e logo disse:
— Está vendo isso menina? Essa é a casa para onde todo mundo vai um dia, seja rico, seja pobre, não tem escapatória...A não ser que queira ficar para semente.
Naquela hora, Mariinha não entendeu bem os motivos de alguém vir a ser ocupante de semelhante casa. Muitos anos depois quando se lembra de sua ingenuidade, sente um calafrio. Na verdade, aquele dia ela preferiu a segunda opção. Queria mesmo ser uma semente.
Na enorme sala de assoalho, uma porção de velas queimava num canto; um cheiro enjoativo de flores murchas recendia pelo ambiente. O caixão do fazendeiro jazia no banco grande de madeira, rodeado pelos parentes. No quarto, a viúva, de cama não aguentava mais de tanto chorar e desmaiar, rodeada pelas filhas e noras que choravam também.
Mariinha e outras crianças foram até a cozinha, onde um bando de mulheres lidava num enorme fogão à lenha, repleto de panelas, chaleiras e caldeirões. Preparava-se um banquete com muito arroz, feijão tropeiro, leitão assado, macarronada, galinhada. Era costume servir uma refeição reforçada a quem ia passar a noite no velório e aos homens que carregariam o banguê com o defunto até a cidade, longe da fazenda, mais de uma légua.
Tarde da noite, lá fora um garrafão de cachaça servia para esquentar o frio dos homens que contavam causos, escorados nas tábuas do curral. Peneiras que quitandas de toda espécie, circulavam pelos cômodos da casa e varandas, iluminados por velas e lamparinas de querosene.
Anunciou-se que seria rezado um terço, na encomendação da alma do Sô Hermógenes. Povo se ajuntou na sala, no meio do reboliço apareceram as crianças que brincavam lá fora. Curiosas, se ajeitaram ao redor, para espiar aquela imagem pálida e imóvel ali dentro daquela “caixa”. Por alma de quem todo mundo rezaria.
Enquanto “roía” um enorme biscoito de polvilho, Mariinha observava o velho Hermógenes. Trajando um terno escuro, calçado de botinas novas, jazia sob um véu de renda, com enfeites dourados na ponta. Envoltas num rosário de contas, as mãos cruzadas no peito. Não se soube de onde a menina tirou a ideia de levantar o véu e colocar um biscoito de polvilho daqueles grandes, bem entre as mãos do defunto.
Em meio às orações todos se entreolhavam, mas ninguém teve expediente para suspender o véu e tirar a quitanda. Uma das tias da menina puxou-a pelo braço levando-a até um canto. Passou uma descompostura daquelas e ainda a amedrontou dizendo que o finado voltaria para assombrá-la e puxar seu pé toda noite, caso ela não consertasse o malfeito.
O terço quase no final; sob os olhares curiosos da multidão, Mariinha entrou na sala, aproximou-se do caixão, retirando o que havia colocado nas mãos do extinto. Olhou-o dizendo com voz trêmula:
—Discurpa aí, Sô Hermoge, foi sem querê... Num vem puxá meu pé não...
Saiu do velório correndo e atirou o pedaço de biscoito ao primeiro cão que encontrou lá fora.
Texto escrito para o Exercício Criativo. Tema: "Desculpa aí." Acesse o link e leia todos os participantes.
http://encantodasletras.50webs.com/desculpaai.htm
Biscoitos de polvilho