O dia em que Herculano Perestrelo vendeu o cemitério.
O prefeito de Guanhabuzamba, Herculano Perestrelo, guiava o carro oficial pelas ruas de Guanhabuzamba. Sentado ao lado estava seu fiel escudeiro e secretário de governo Anacleto Bonfim.
Subiam pela encosta da rua onde iria dar ao cemitério local. Era dia de extremo calor quando o automóvel dobrou a penúltima curva e, por coincidência, depararam com um cortejo fúnebre em direção ao portão do murado espaço fúnebre. O caixão simples e sem muitos detalhes era levado pelas mãos de seis homens, alguns segurando seus chapéus de palha surrados numa das mãos a indicar que seriam pessoas do meio rural ou da periferia. Outros homens e mulheres vinham atrás. Provavelmente vinham do êxodo rural não se estabelecendo nos melhores pontos da cidade e viviam distantes do centro, sem calçamento ou calçadas, mas contentes pela luz elétrica que entrava pela porta de suas casas, honrados se sentindo ao cumprimento do pagamento do IPTU que lhes chegava pontualmente como preço a pagar por viverem mais próximos de um atendimento de saúde que a duras penas cumpria aquilo que se estabelecera na Constituinte de 1988.
O carro ultrapassou o cortejo e chegou primeiro à capela mortuária. Os dois homens saíram de dentro do veículo, bateram as portas e puseram-se a frente do capô do Honda ano 2013. Herculano tirou do bolso da camisa seu maço de cigarros Hollywood e passou a dar-lhe pancadinhas enquanto observava a cidade lá abaixo. Estavam num dos mais belos mirantes de Guanhabuzamba, de onde se via todo o centro da cidade e as colinas que a cercam, além dos horizontes a se perderem de vista.
- Veja, Anacleto. É aqui. Imagine que maravilha todos os dias acordar e ver pela janela do quarto esta paisagem, longe do barulho daquele centro caótico. E a construtora vai me dar o lote de lambuja e me cobra só 30% do valor da mansão que vai construir para mim. O projeto é maravilhoso; você viu a maquete. Condomínio todo murado, com porteiro e segurança, sem aquela cachorrada de rua zanzando, derrubando e abrindo saco de lixo. Aqui vaca ou boi de rua também não vai entrar. Só se criar asa e coragem – acendeu o cigarro, deu uma tragada, soltou e voltou a falar - Vou expropriar. Vou! E quero ver se vereadorzinho de merda vai me impedir, Anacleto.
- Doutor, vai ser difícil com aqueles lá da oposição, doutor.
Herculano olhou para trás e viu que o cortejo fúnebre se aproximava cada vez mais perto. Passou a falar mais baixo.
- Lembra do sujeitinho que falou, que disse, que escreveu sei lá onde… que “tudo se compra, menos a honra”? Esqueça Anacleto. Eu e a construtora vamos comprar a honra desses vereadores. Tudo tem um preço, não se esqueça – tirou um cigarro, acendeu, tragou e continuou a fala ainda com a fumaça nos pulmões - Tudo tem um valor; é uma questão de negociar e dar o preço.
Anacleto permaneceu calado. Surpreendeu-se com a mudança brusca de assunto de Herculano quando este virou-se para trás e observou o cortejo fúnebre aproximando-se dos portões.
- Quem morreu, Anacleto?
- Não sei, doutor. Mas a viúva deve ser aquela de preto que vem bem atrás do caixão.
-É … tem cara mesmo. É pena que morreu… menos um voto para mim. Vou já saber quem tá esticado e já garanto pelo menos o voto da viúva.
A procissão chegava ao portão de entrada. Os que carregavam o caixão resolveram, a pedido de um deles, interromper a caminhada para relaxar os músculos e tomar fôlego da grande subida que acabavam de fazer. Herculano aproveitou e aproximou-se da senhora que deveria ter cerca de 65 anos, chorosa e amparada por dois familiares.
- Minha senhora, os meus pêsames.
A mulher ergueu os olhos e reconheceu a figura do prefeito.
- Seu prefeito! O senhor aqui! – E não disse mais nada, comovida.
- Eu estava no gabinete e soube da morte de seu marido, imediatamente vim. Não poderia deixar de fazer-lhe uma última homenagem – e deu-lhe um leve abraço.
Anacleto ao lado e um pouco atrás movimentava a cabeça em sentido positivo e procurava manter uma expressão de desalento.
- O senhor é um santo! Obrigada.
- Ele descansou.
- Obrigada.
Herculano afastou-se e sussurrou ao ouvido de Anacleto.
- Vamos sair daqui, senão ainda tenho que levar esse povinho todo em casa.
Seguiram para trás da capela onde não eram vistos pelos presentes e Herculano prosseguiu, falando em tom muito baixo.
- A expropriação vai dar certo e em dois anos está tudo pronto. O engenheiro da construtora me garantiu. Nós temos é que dar conta do nosso recado. Temos que aprovar o projeto na câmara.
- Mas, mas… doutor. É um campo santo! Para onde vamos levar os defuntos?
- Eu farei outro cemitério, Anacleto. Eu iria deixar os defuntos sem cova, homem? Onde já se viu tamanha heresia? Longe de mim. Construirei um cemitério tão bonito que nunca se viu em toda Minas Gerais. E vai ter duas opções para as famílias escolherem onde sepultar o defunto, dentro do mesmo recinto.
- Como assim, Doutor?
- De um lado vai ser todo gramadinho, que nem os modernos de Belo Horizonte, só com a plaquinha de metal indicando a última morada do morto; do outro lado um tradicional, cheio de santo e imagem para os mais conservadores. Que tal?
- O povo não vai gostar, doutor. Quem há-de morar em cima onde já foi cemitério?
- Vou mandar transferir toda a defuntada e mandar benzer. E o povo depois se acostuma. Não se preocupe. Antes que eu me esqueça, ligue para aquele empresário de música bilisquete porque vou precisar dele durante este tempo. Toda vez que ele manda alguém aqui tocar aquela barulhada o povo amansa.
- Qual dos empresários, doutor?
- O que ajudou na última campanha. E veja quantos contratos ainda devemos para este enjoado, pois tá na hora de mudar de apoio. Não é muito bom criar rabicho com patrocinador de campanha por muito tempo. Acaba achando que virou família e daqui a pouco tá entrando pela prefeitura adentro querendo sala ou escritório. Eu conheço estes tipos.
Entraram no carro e desceram a encosta.
“17 dias depois, manhã de segunda-feira, 10:00 horas, Paço Municipal"
Antes que o prefeito Herculano entrasse no corredor em direção ao seu gabinete, dona Margarida, a eterna secretária, antecipou-lhe.
- Bom dia, Dr. Herculano. Há pessoas querendo falar com o senhor e não querem saber se marcaram audiência. Disseram que não vão sair daqui sem falar com o senhor.
- Quem taí?
- O senhor não vai acreditar. Estão sentados na sala de espera, juntos, o padre Oto, o Zé Maria Capeta e o Vicentinho da Horta.
- Zé Maria Capeta, o macumbeiro?
- Este. Mas chegaram separados.
Herculano entrou na antessala e cumprimentou a todos com aperto de mão caloroso e tentou fazer alguma justiça.
- Bem, senhores. Posso atender conforme a ordem de chegada?
Zé Maria Capeta, o macumbeiro foi quem respondeu.
- Seu prefeito, estamos aqui todos pelo mesmo motivo, mas não combinamos de virmos juntos. Seria bom uma reunião geral com todos. O que acha, seu padre?
O pároco franziu os músculos do rosto.
- Por mim tudo bem…
Herculano ainda não compreendendo o sentido da visita, perguntou.
- E qual o assunto, senhores?
- A venda do cemitério – quase responderam juntos.
A seguir, entraram para dentro do gabinete e sentaram-se todos à mesa de reuniões. Frente a frente estavam Herculano, Padre Oto com sua batina preta com o colarinho clerical, Zé Maria Capeta todo de branco com os colares do candomblé pendurados no pescoço e Vicentinho da Horta com seu típico macacão que parecia nunca tirar para lavar.
Padre Oto Weippert foi quem abriu, com seu sotaque alemão, apesar de tantos anos ter vindo da Alemanha e se radicado no Brasil.
- Sr. Herrculano, na sexta-feirra fiquei sabendo de um notícia que não deixou-me dorrmirr todo o noite . É verrdade que o senhor pensa em desapropriar o cemitérrio?
- É verdade, mais devo-lhe dar detalhes. Não se assuste. Ou melhor, não se assustem – e dirigiu o olhar aos demais – vamos construir outro cemitério muito mais amplo, melhor e onde todos poderão ter mais dignidade. Um cemitério para todos! A minha administração não se esquece nem dos mortos, senhor padre.
Reinou certo silêncio sob a confirmação da venda e padre Oto prosseguiu.
- Não me diga detalhes, senhor Herrculano. Eu não saber e nem querro saber de detalhes de tamanha profanação. Saiba que aquilo é um campo santo e de eterno descanso. O nossa igreja não concorda com isso. Que blasfêmia!
Desta vez foi Zé Maria Capeta quem interviu.
- Seu prefeito, e vão transferir todos os caixões que estão lá?
- Sim, é verdade, senhor Zé Maria. Vamos trasladar com todo o respeito, certos de que terão uma morada muito melhor no novo cemitério que iremos construir.
- E vão fazer o que com a área expropriada?
- Vamos construir uma área habitacional –omitindo sobre o condomínio fechado.
Vicentinho da Horta desta vez explodiu.
- Habitacional?!
Vicentinho era uma figura extremamente popular que vendia produtos hortigranjeiros num carrinho de mão pela cidade, famoso pela boa qualidade de seus produtos. Tinha clientela garantida e vendia de porta à porta seus legumes de sabor e tamanhos fora do comum.
– Habitacional? Vão encher aquilo de rua e casa? E onde eu vou plantar minhas batatas?
Todos olharam para Vicentinho com curiosidade. Sentindo-se na obrigação de explicar, continuou.
- É isto mesmo. É o que vocês ouviram. O segredo das minhas batatas-doces enormes e deliciosas é porque eu as planto entre as covas rasas do cemitério. Ou pensam que o sabor vem dos pesticidas caros que envenenam este povo aí?
Zé Maria Capeta esbravejou.
- Dr. Herculano, todos os meses, na última sexta-feira de cada mês tocamos nossos atabaques lá dentro do cemitério, e devo avisar que aqueles que lá moram não concordam com a mudança.
Herculano espantou-se.
- Como assim, seu Zé Maria? Não concordam? Mas eles já morreram.
-Eles me disseram nos búzios – disse pausadamente , com cara de autoridade aos demais presentes, com nítida provocação ao padre.
Deu-se início a uma discussão religiosa a partir do padre Oto.
- O senhor Zé Marria me desculpe, mas isto não tem cabimento. O senhorr não pode, não tem dirreito de entrar no campo santo e fazer das suas.
- E onde eu vou plantar minhas batatas? – Retornou o inidgnado Vicentinho.
Ninguém mais se entendeu e a reunião terminou desta forma, com Herculano sob ameaças de perda de votos.
Durante a semana, o tema “ venda do cemitério” tomou conta das esquinas, dos bares, das casas de Guanhabuzamba. Um movimento popular contra o negócio foi acionado na internet entre alguns militantes da oposição. Herculano viu-se pressionado e pensou rápido; convocou em seu gabinete seu representante na Câmara Municipal e orientou-lhe que solicitasse uma reunião extraordinária em caráter urgente.
- Matias, trate do assunto antes que isto envolva muita coisa. No dia da reunião, arrume gente para nos apoiar com umas faixas. Qualquer R$ 10,00 de cachê você contrata. Trate disto. E veja também se consegue falar com o Zé Maria Capeta, o macumbeiro.
- Eu, doutor? Por que eu? – Com receio.
- Uai… você não é o líder do meu governo?
- E falar o quê com ele??
- Tente fazer as pazes, para ele tentar conversar lá com aquilo … você sabe o que é.
- Não. O quê?
- Matias, eu não acredito nestas coisas, você me entende, você me conhece. Mas pelo sim, pelo não... veja lá.
- Não entendi ainda, doutor. Falar o quê com Zé Maria Capeta?
- Matias, ele costuma ir para o cemitério de noite bater tambor e jogar búzios, aquelas coisas da religião dele. E segundo me consta, ele fala com os mortos. Veja se consegue um acordo com o Zé Maria. A dona Margarida me falou que hoje cedo acharam em frente à porta da prefeitura um despacho. E eu não gosto destas coisas para o meu lado.
- Ah, entendi, doutor – respondeu com desolação compreendendo a missão – o senhor tem medo de macumba, né...
- Eu não tenho medo de nada, homem – desta vez Herculano, das poucas vezes em sua vida, não foi convincente em sua mentira – quero é estar em paz com este povo todo. Voto de católico ou de terreiro é tudo igual, é o que importa. Vá lá e tente amansar o homem com alguma coisa que ele queira e nós não saibamos.
“Quarta-feira, 19:00 horas , salão da Câmara Municipal, reunião extraordinária”
Todos os vereadores estavam sentados de frente para o público que aguardava ansioso pelo início dos trabalhos. A sala não cabia mais de gente de todos os credos, além dos descrentes mais preocupados com o caminho técnico que a venda da área tomava, tendo uma construtora arrolada em vários processos suspeitos na justiça estadual. Na primeira fila de cadeiras estava Zé Maria Capeta, o pai de santo da cidade, que chegara muito cedo na intenção de ficar o quanto mais próximo dos vereadores. Vinha impecavelmente vestido de branco e um turbante da mesma cor na cabeça, com o peito desfiado em colares multicores. Tinha o semblante muito carregado.
Já se sabia de antemão que a aprovação seria feita por pelo menos 10 dos votos contra 3. Seria apenas uma questão de confirmação formal, e Zé Maria Capeta não queria aceitar de forma alguma, disposto a tudo. Alguns populares estenderem uma faixa com a frase a chamar atenção para o erro ortográfico:
“O semitério deve ser vendido. Nós apoiamos Dr. Herculano”.
Do lado de fora, na rua um carro estacionou e saíram de dentro dois homens vestidos com uniforme de uma empresa terceirizada que atendia às urgências das CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais. Eram dois funcionários muito jovens, recém-saídos da escola técnica e ainda com pouca experiência na atividade, que iam assimilando a cada serviço prestado. Dirigiram-se à portaria e não viram ninguém que os pudesse atender. Um disse para o outro.
- Não importa. Vamos ao disjuntor e ver o problema. Segundo a reclamação aqui escrita, cai sempre quando se ligam todas as luzes.
Enquanto isto, no salão nobre da câmara era lida pelo presidente a proposta de expropriação e venda do cemitério. Assim que terminou a leitura, o silêncio da sala foi quebrado por Zé Maria Capeta, que de pé começou a falar numa mistura de língua nagô e português. O presidente tentou impedir, dizendo.
- Informo que são proibidas as manifestações verbais nesta casa sem o prévio consentimento.
Alguém quis filmar com o celular o desdobramento espiritual que Zé Maria parecia estar passando, e foi admoestado novamente pelo presidente.
- E filmar as reuniões também não é permitido.
Zé Maria Capeta adiantou-se e deu dois passos ficando frente a frente com o presidente e líder do governo, nitidamente constrangidos.
- Obaluaê ! Obaluaê! Quem tá falando aqui é preto véio. Num vem que num tem. O cemitério não vai sair dali, mizifin. Se vender, eu ponho ocês tudo na escuridão que nós véve e lutemo nela.
Neste exato momento, os dois funcionários da empresa de manutenção elétrica estavam a frente de um grande disjuntor e aparato que transmitia energia elétrica para todo o prédio. Um dos jovens, com uma chave de fenda, tocou indevidamente num dos terminais. O resultado foi um curto-circuito geral onde todas as lâmpadas da câmara estouraram e todos presentes na reunião ficaram às escuras, que sugeridos pela ameaça da escuridão do pai de santo, deram início a uma correria e gritaria infernal. O terror tomou conta nesta hora.
Com mínimo senso de orientação naquele breu o povo se acotovelou e fugiu descendo as escadas, em pânico, sob os berros do pai de santo que permanecia gritando.
- Eparrê!!! Eparrê!!!
Não ficou um vereador sentado.
No dia seguinte, Herculano tomou uma decisão. O acontecido na câmara fora demais para sua pouca fé e insuficiente para sua ganância, preferindo acreditar na ameaça de Zé Maria Capeta, e desta forma, desistiu da venda do cemitério.
©dalmirlott 14/10/2013
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