O CAUSO: ZECA MÃO DE FINADO
Zeca Mão de Finado tinha essa alcunha por ser comilão e sovina. Por ninharia ele pegava marimbondo. Quando a oferta aumentava, ele se deixava ferroar no beiço. Ficava sem falar uns três dias, porém, feliz da vida.
Zeca Mão de Finado não podia ver um resto de tira-gosto sobre uma mesa que suas pupilas esbugalhavam famintas. Quase sempre pechinchava um pão com manteiga na padaria de Seu Joaquim a preço de pão seco dormido. Depois abria o danado ao meio e lambia as duas bandas manteigosas com a língua bem exposta, isso para distanciar do enorme bigode e pra ninguém pedir um pedaço, já que oferecer ele não era bobo.
Foi assim que, certa ocasião, chegou um novato, de nome Miguel Paes, na cidade de Zeca Mão de Finado.
Miguel Paes, moço desinibido, risonho... mais parecia político em campanha de segundo turno...
Pois então, numa certa manhã, Miguel Paes se assentou no tamborete do balcão da padaria de Seu Joaquim, onde já se encontrava Zeca Mão de Finado – que acabara de lamber o pão manteiguento, de cabo a rabo. Miguel Paes não viu e nem sabia da mania do seu grande amigo Zeca.
– Meu grande amigo Zeca! – exclamou Miguel Paes. – Que pão jeitoso, amigão!... Dê-me cá uma lasca, homem!
Zeca Mão de Finado não gostava do sinal matemático de dividir, mas, dada a possibilidade de angariar multiplicação sobre Miguel Paes, ele não fez questão, cedeu.
– Ôh, Seu Joaquim, o pão de meu amigo Zeca está com pouca manteiga...! E parece até... – Miguel Paes esfregou por três vezes a língua nos lábios e atestou com educação: – um pouquinho... rançosa... Ôh, Seu Joaquim, abra uma nova lata e atola de manteiga.
Não teve jeito, Seu Joaquim pegou o pedaço de pão da mão de Zeca Mão de Finado, abriu nova lata e encheu de manteiga que as bandas nem se acomodavam direito. Seu Joaquim pouco se importaria se desta vez Zeca Mão de Finado lambesse a manteiga nas fuças de Miguel Paes. Zeca Mão de Finado é usura, mas não é burro. Apertou a lasca de pão para esborrar a manteiga. Aí, sim, ele lambeu com gosto para não deixar cair no chão.
Mas em cidade pequena... esse causo foi coando de saliva em saliva até cair nos tímpanos de Miguel Paes. Como o nojo era antigo e a lasca de pão já havia saído, ele não vomitaria o almoço que fora na residência da futura sogra.
A vingança bem feita é aquela que não é planejada. Tem que ocorrer espontaneamente, ditada pelo acaso. E essa foi encomendada pelo destino.
Um dia, Miguel Paes pagava uma cervejada para dois colegas, justamente na padaria de Seu Joaquim, quando percebeu Zeca Mão de Finado que vinha chegando, procurando dinheiro pela sarjeta. Miguel Paes, pretensamente maldoso, ordenou a Seu Joaquim que lhe trouxesse mais um chopinho.
Miguel Paes, que já havia tomado alguns, bebeu mais da metade do novo chopinho. Abriu a braguilha e ali mesmo, por debaixo da toalha, fez a urina jorrar com força, só para devolver o colarinho ao copo. Colocou o chopinho “batizado” numa mesa vazia e pediu outro para Seu Joaquim que já se ria, pois vislumbrara o Zeca Mão de Finado que se avizinhava.
Zeca Mão de Finado chegou de manso. Cumprimentou a todos e foi observando as mesas. O chopinho solitário lhe sobressaltou aos olhos. Chegou mais perto. Não puxou assunto. Miguel Paes narrava um fato ocorrido numa partida de futebol da terceira divisão, na qual o árbitro buscou abrigo numa delegacia. Zeca Mão de Finado não resistiu. Precisava saber o que aquele chopinho “desacompanhado” fazia ali. Interrompeu:
– Meu camarada Miguel Paes... me diga homem... de quem é esse chopinho desprezado? – farejou com os olhos gulosos.
Miguel Paes não se fez de rogado.
– Meu grande amigo Zeca, é de um caminhoneiro. Ele foi até ao seu caminhão com o chopinho e retornou com ele do mesmo jeito. Assegurou que era intenção sua pernoitar aqui e só seguir viagem amanhã, mas recebeu um telefonema de sua sobrinha avisando que a esposa fora hospitalizada em estado grave e chamava pelo infeliz. Então ele comentou que não arriscaria ingerir o chopinho e pegar no volante, caso fosse parado numa fiscalização a multa levaria seu salário para as cucuias. Então o caminhoneiro largou o copo na mesa e se mandou. Mas, pelo tempo... já deve estar quente.
Zeca Mão de Finado abriu o sorriso. O sorriso ninguém viu, porque o bigode de escovão, que tapava até o lábio inferior, não permitia. Dava arrepios na alma ver Zeca Mão de Finado saboreando bobó de camarão... Terminada a explanação de Miguel Paes, a oferta fora feita: o chopinho estava mesmo desamparado e o colarinho era convidativo. Zeca Mão de Finado não pensou duas vezes. Ele não teria problemas... nem carro e nem carteira de motorista possuía!
Zeca Mão de Finado abarcou o copo e, por receio que alguém lhe reivindicasse divisão, virou o conteúdo de um só fôlego. Quando terminou, pensou imitar os comerciais de cerveja e estalar os lábios, mas, assim que respirou, sentiu o azedume de banheiro de cinema de subúrbio lhe atravessar as narinas e o badalo da úvula querer saltar para fora da goela. Zeca Mão de Finado não evidenciou a péssima qualidade do chopinho com Seu Joaquim. Enrugou a testa. Esquadrinhou ao redor. Notou que todos o fiscalizavam, atentos. Agora sim, de estalo sacou que havia caído numa bruta sacanagem. Como esvaziara o copo, não sobrou nem uma gota para ameaçar, com um possível exame laboratorial, o autor da brincadeira nojenta, pois, embora Zeca Mão de Finado nunca tivesse experimentado, ele tinha certeza, absoluta, que aquele gosto escroto era de mijo.
Contam que ele saiu às carreiras da padaria e foi mijar lá fora, ou melhor, vomitar. Contudo, quem viu a cena sem saber do ocorrido, divulgou que, dado a uma disfunção orgânica, o pobre homem passou a urinar pela boca.
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