UM CONTO DE PROSA - Parte 01
INÍCIO

Depois de horas pela estrada, chego ao lugarejo ...bem interior, uma via estreita de terra, sem movimento, lugarzinho pacato, chegava a ser triste ver as casinhas ao longo da rua que seguia por algumas poucas centenas de metros de forma reta, e então sumia em uma curva acentuada a direita, na mesma curva a rua bifurcava em outra estradinha bem mais estreita que de longe parecia mais um carreiro a se estender por um aclive que levava até uma igrejinha de torre única e com um sino, plantada mais acima em um clarão plano que se abria com algumas arvores a rodear, por certo ali era onde a comunidade se reunia aos domingos, dava para perceber alguns cachorros soltos, uma ou outra criança correndo para fora de casa, descalças e só de shorts, a pele queimada pelo sol e já além do dourado, um bronzeado sem brilho.
Mesmo sendo fim de tarde o calor era intenso, parei o carro, abri o vidro e o choque térmico do bafo quente vindo de fora em encontro ao ar climatizado em 22 graus do interior do carro fizeram as lentes do meu óculos embaçar, tirei-o do rosto, limpei na gravata e voltei a coloca-lo, avistei um pequeno comércio a esquerda da rua, uma porta apenas, tinha as paredes desbotadas e com rachaduras e sobre a porta pintado em português errado “BAR OS MARDITO” pensei comigo, estou perdido, não chegaria mais a tempo ao meu compromisso, o horário para a reunião que tinha no início da noite teria de ser remarcado, o celular como sempre sem sinal, ...grande erro meu, confiar tanto neste aparelhinho a ponto de usa-lo como telefone, maquina fotográfica, agenda, computador e infelizmente aquele dia também como GPS, sim, perdi o sinal a hora e o rumo.
Olhei novamente para o Bar, e pensei ...bom ao menos um telefone eles devem ter por aqui.
Encostei o carro onde a rua era um pouco mais larga, cuidado desnecessário, já que nem carroça eu vi passar, caminhei até o bar, ao chegar à porta vi um Caboclinho atrás do balcão, feição alegre, abriu um sorrisinho quando me viu entrar, já emendou dizendo de forma simpática.
- Boa Tarde doutor, se chegue!
Aproximei-me do balcão, comprimentei-o com um sorriso também, e um aceno de cabeça.
- Boa tarde, você teria um telefone aqui, meu celular está fora de área.
- Tenho não senhor, aqui celular só pega lá pros lados do morro da Ferradura.
- E é muito longe daqui?
- Umas boas léguas, e sem respirar foi explicando, depois da curva lá na frente, segue mais um tanto até a encruzilhada, lá pegando a esquerda seguindo mais um pouco passa o sitio Trevo Verde, continua até chegar à ponte do rio da Figa, ai é só atravessar e logo adiante chega ao pé do morro da Ferradura, mas se sou o senhor não vou lá não a esta hora!
- E porque não, questionei-o achando graça.
- Logo logo escurece e lá é lugar do Pé-Virado.
- Pé-virado? Que é isto perguntei.
- Pé-Virado ora, nunca ouviu falar do Curupira?
Confesso que já ouvi falar da lenda, mas é pura crendice isto, retruquei.
- Aliás, por aqui vocês são bem supersticiosos, Morro da Ferradura, Sitio Trevo Verde, Rio da Figa, tem encruzilhada sem contar o nome do bar que é de assustar “OS MALDITOS”.
- Não senhor meio contrariado ele respondeu, aqui todo mundo é religioso, ninguém é maldito não, e o bar leva o nome do meu falecido Pai, Osmar Dito.
Com olhar de idiota meio desconcertado me desculpei, ...sem sinal, sem rumo e sem onde enfiar a cara também, que dia.
O desbotado e as rachaduras na parede haviam criado a ilusão do nome do bar, para amenizar a vergonha, resolvi perguntar sobre o tal Curupira.
Respondeu-me que nunca o viu, mas que um tal de Nardo e o seu Beja já haviam dado de cara com o dito Pé-Virado, mal terminou de falar entrou pela porta um Matuto de estatura média, corpulento, um rosto redondo, olhar tranquilo, chapéu de palha, camisa aberta até a barriga, pele morena com algumas manchinhas mais escuras por certo pela labuta ao sol, caminhou sossegado com seus chinelos de dedo e foi até o balcão, e após me sorrir e acenar em cumprimento com a cabeça se dirigiu ao Caboclinho dizendo.
- Falando de mim moleque?
O Caboclinho rápido disparou a explicar - não seu Beja, é o doutor que quer saber do Pé-Virado.
Então aquele era o seu Beja que juntamente com o amigo, haviam enfrentado o famoso Curupira.
Seu Beja então me olhou com aquele típico olhar desconfiado e disse.
- Qual seu interesse doutor pelo Pé-Virado?
Expliquei resumidamente que trabalhava com vendas e que nas horas vagas gostava de escrever, então como já estava ali, gostaria de saber sobre a história.
E perguntei então se ele poderia me contar o emocionante encontro com o Curupira.
Com um sorriso matreiro completou
-Não sei doutor, pigarreou ele, ainda agorinha eu tava na roça, preciso molhar a goela primeiro, quem sabe uns dois dedinhos de pinga ajude.
Entendendo o recado, de imediato perguntei ao Caboclinho quanto custava dois dedos de pinga.
- Um conto paga doutor, num risinho contente por me vender algo ele respondeu.
Então pedi logo a garrafa, queria do Matuto a história toda arrancar, afinal, tinha dirigido por horas para chegar a lugar nenhum, ao menos uma boa história para escrever ajudaria.
Assim o trato velado e implícito com o Matuto foi firmado, um conto de prosa por dois dedos de pinga, ou seria dois dedos de prosa por um conto de pinga, bom, isto tanto faz.
Sentamos em uma das poucas mesas que havia no lugar, o Caboclinho trouxe já aberta uma garrafa de cachaça e dois copinhos pequenos, colocando um em frente de cada um de nós, e já foi enchendo eles, eu disse então que não iria beber, pois, precisava dirigir ainda naquele dia, mas já fui repreendido que não beber em meio a uma prosa seria uma desfeita, então seu Beja em um gole só virou o copinho e acenou para que eu fizesse o mesmo, aproximei o pequeno copo dos lábios senti o cheiro forte da cachaça primeiramente apenas molhei a boca, senti a língua entorpecer, seu Beja achando graça disse, vira logo isto homem, foi o que eu fiz, mal a pinga desceu pela garganta eu já estava tossindo afogado, gargalhando o Matuto me aconselhou a beber mais um copo, segundo ele a primeira amortece a goela e da segunda em diante fica doce.
Explicou também que a cachaça era feita com cana e uma mistura de banana e por isto era mais fraquinha e adocicada, juro que se aquilo se chama fraquinha e doce, da pinga mais forte não quero nem ver a garrafa.
Então o seu Beja começou a contar sobre o tal encontro com o Curupira, ambos, Beja e o Nardo que infelizmente já é falecido e como soube no decorrer da história ser um grande amigo e melhor caçador das redondezas, haviam decidido sair certo dia para caçar tatus e porco do mato, seguiu contando entre um gole e outro o qual me fazia acompanhar, após afrouxar a gravata e o terceiro, já me sentia mais apto aquele ritual de virar o copinho, de fato a garganta estava mais acostumada com o sabor que já parecia agradável e um certo torpor e leveza pelo corpo se fazia presente.
Voltando a história, estavam os dois caçando nas matas do morro da Ferradura quando perceberam que seguiram muito longe e já começava a escurecer, como a trilha era fechada e de difícil acesso, resolveram uma fogueira ascender e acampar até a manhã seguinte, armados com suas espingardas e uma faca de corte, montaram acampamento improvisado, destrincharam um tatu para servir de refeição naquela noite e acompanhados de uma boa garrafa de cachaça jantaram, beberam um pouco e conversaram por algumas horas, imagino que pela forma que ele já virava o oitavo ou nono copinho a minha frente, não deve ter sido tão pouco o que beberam, mas seguindo com a história, estava tudo tranquilo até que em certo momento quando ambos já se preparavam para dormir, começaram a ouvir barulhos que segundo o seu Beja eram diferentes dos costumeiros feitos pelos animais que por ali circulavam, receosos resolveram apagar a fogueira que ainda queimava em brasas e ficaram de prontidão com suas espingardas, mas o barulho estranho entre as arvores foi se intensificando e se aproximando, como o Nardo era melhor caçador queria ficar por ali e esperar, mas seu Beja conhecedor das histórias daquela mata sugeriu que ambos seguissem a diante para se afastar da ameaça que por certo estava chegando, então começaram a se afastar, mas o barulho os seguia, quanto mais rápidos os dois andavam mais rápido o barulho atrás deles vinha, até que ambos desandaram a correr, segundo seu Beja tanto a ponto dele perder os chinelos que calçava e uma faca de estimação, quando já haviam corrido bastante e cansados, o Nardo bom caçador que era, reconheceu algumas arvores que levavam ao caminho e a picada para a saída da mata, então segundo seu Beja ambos foram seguindo o caminho escuro, o Nardo cuidando da frente e ele cuidando do que poderia vir de trás, e assim após algum tempo saíram na estrada principal concluiu ele, virando mais um copinho de pinga que nem sei qual era mais, pois, depois do quinto que bebi, a sexta rodada permanecia no copo.
Seu Beja ajeitou-se e espreguiçou com os braços para o alto, quando impaciente perguntei sobre como de fato ele tinha encontrado o Curupira, no que ele continuou a contar.
Pois seu doutor disse ele, depois do susto daquela noite uns dias depois criei coragem e resolvi voltar atrás da minha faca, e estava lá à prova, quando eu e o Nardo saímos da mata no carreiro para descer a picada do morro, o danado nos seguiu até a estrada, encontrei as pegada do Pé-Virado vindo atrás de nós, meio apagadas já, mas tava lá, e o bicho chegou bem pertinho.
Meio desconcertado e ainda sobre o efeito da pinga, mesmo assim clareei as ideias e questionei.
- Seu Beja, mas não seriam as suas pegadas andando de costa naquela noite, e o Matuto me olhou nos olhos primeiro e depois para o meu copinho que permanecia cheio, apontando pediu consentimento para bebê-lo, e novamente e pela enésima vez virou em um gole só, e só ai disse entre o badalar do sino da pequena igrejinha que anunciava que a noite chegara e já eram seis da tarde.
- Hora de eu ir, minha velha já deve estar com a janta na mesa, e levantou-se caminhando em seu sossego para a porta.
Sem entender direito, fiquei meio sem reação e pensei comigo, mas é só isto, é assim que acaba a história?
Inconformado e me sentindo enganado pelo trato que tinha feito, resolvi mais uma vez questiona-lo, não poderia ficar sem um final e sem saber.

E ao matuto então eu perguntei.
- Mas foi assim que terminou?
E ele já saindo alegre disse,
- Não doutor, mas a pinga acabou!

E me sentindo um próprio tonto,
rindo sozinho eu fiquei.
E o que até hoje eu não sei,
se foi tudo prosa ou conto.