165 - CAPIM SANTO...
Virgem minha Santa amada Maria abençoa este corpo maltratado pelo tempo, que teimosamente insiste nesta empreitada, nesta peregrinação, quero rever ainda que seja pela ultima vez, que estes olhos meus, velhos e cansados, se maravilhem novamente com os encantos e as belezas da minha terra natal, o meu querido Capim Santo.
Eu venho de longe, de muito longe, aqui chegando cheguei... Abarrotado de curiosidade e ansiedade, por entre estas casas em desconstrução me esquivo, pois tenho na mente um velho casarão, morada minha antiga que o tempo perpetuou no meu lembrar.
Agora que me vejo em frente a este velho casarão, casa outrora afamada pelas festas e pelos folguedos, o passado não pede passagem, simplesmente vai se mostrando, e inesperadamente mostra toda aquela gente na algazarra descascando e ralando mandiocas pra farinha no fazer, comer beiju ainda quente era um prazer, e esta é a minha casa, a casa que me viu nascer e crescer, e sinto que sombras desarrumadas de cores e de emoções assombrando perambulam por ti, coisas remanescentes de vidas e sonhos aqui vividos, e entre estas estou eu sem saber como prosseguir neste silêncio abismal e aterrador, mas de repente vozes e canções voltam a ecoar magistralmente na minha mente, numa perfeição da sinfonia de outrora, e aos olhos da alma os acontecimentos idos agora vão se desfilando a extasiar e a encantar, até o que era feio e enfadonho, nas lembranças ganham ares de beleza, e de uma coisa eu tenho a mais absoluta certeza, que foi aqui que vivi os mais belos e os mais felizes momentos da minha vida.
Caminho com dificuldades pelos escombros da minha casa, tudo é desolador, e em cada pedacinho destas paredes decadentes eu vibro sensações de dias inesquecíveis aqui vividos.
Na mente um turbilhão de imagens desfilando, meus pais, meus irmãos, os amigos, os conhecidos e os desconhecidos, todos parecendo me abraçar desejando boas vindas.
Da varanda para onde a vista alcança tudo é destroçado, tudo é silencioso, tudo adormecido como que se mortos estivessem, e mortos estão. Minha casa apesar dos estragos conserva uma tosca varanda, nas noites de luar eu ali ficava sentado, quieto, observando a lua a desenhar pelo chão, monumentos de sombras entremeados de clarões, que na minha mente ganhavam vida e cores.
E a pequena Igreja? Minha mãe contava que nela eu fui batizado, abençoando o padre a minha fronte na água benta molhou, batismo em dia de festas, e hoje combalida sobrevive nas paredes que ainda resistem às intempéries e a solidão, mas aos meus ouvidos há rumores de rezas, é a multidão dos sertanejos fervorosamente orando o Pai Nosso e a Ave Maria, tropel naqueles tempos em que os tempos tinham vida e serventia.
Vejo que pouca coisa restou da casa do João Grandão, homem de pouca conversa, tinha o corpo marcado por cicatrizes, resquícios de contendas, dizia a boca pequena que ele era um matador, cão servil dos coronéis, que tinha um pacto com o tinhoso, pois bala nenhuma podia contra ele, gostava de matar é na traição e na judiação, homem de valentias e soberba, era casado com a dona Anita, no recordar vejo os seus filhos, o Antenor, o Luisinho e a Maria Quitéria, meninada de estripulias, de macaquices nas correrias das brincadeiras de pique.
Ah! Ia me esquecendo, naquela esquina ali, ficava a casa do Antenor Festeiro, afamado sanfoneiro, que alegrava o arraial tocando sempre as músicas de Luis Gonzaga, de quem era admirador e imitador.
Ali morava sicrano, aqui beltrano, e assim estou revivendo tudo que um dia teve vida...
Aqui, bem em frente da Igreja, morava o João Cardozo, e ele era lá das bandas da Bahia, peregrino do sertão, homem da língua solta, papagaio falador, contador de causos e acontecidos, aqui se arranchou nos braços da Dona Odete, mulher faceira e prendada, na cozinha era a primeira, prendeu o baiano pelo estômago e pelo coração, e ela lhe deu muitos filhos, o Jesualdo, a Maria das Dores, o Raimundo, e muitos outros cujos nomes não mais me alembro. E ele era capaz de passar uma noite inteira contando causos, contava coisas desde o tempo em que o cangaceiro Lampião e seu bando faziam estripulias por estes grotões, e que muitas vezes o Virgulino e sua tropa se refugiaram aqui no Capim Santo no esconder, escondendo, escondidos ficavam da polícia.
Foi aqui, bem aqui, nesta esquina onde ficava o boteco da Ana do Valfrido, onde dois machos se defrontaram na disputa das carícias de uma mulher da rua, beberam umas cachaças, engrandecidos na coragem, no desafio saltaram pra rua a porfiar, porfiando, porfiaram na peixeira, e foi bem aqui que o Chico caolho entre rasteiras e estocadas, apesar de muito ferido, conseguiu matar o Antonio Porfírio, que caído no chão ficou, e as suas pernas ciscando como que acenando pedindo pela ajuda que não chegou, e ele da vida se foi, o Chico caolho foi preso e mandado para a enxovia lá da cidade de Garanhuns, onde se definhou e morreu, sem mais gozar das carícias daquela mulher, que logo logo com outro se arrumou, a vida tem dessas coisas...
Nas festas de São João, fogueira acessa e na sua volta a reza, a dança e a festa, a pipoca, a batata doce, o quentão, os caboclos desenfurnados de todos os grotões chegavam esticando os braços pros abraços animando a festa.
E os valentões na pinga esquentados, das vezes tiravam satisfações nas rasteiras e negadas, farofeiros que logo apartados e apaziguados juravam momentos de paz, tudo em nome do santo.
Lembro-me, se lembro... Durante o baile, uma mocinha recusou o convite de um cabra para uma dança, ela deu uma baita taba no gajo, ofensa grave aquela, o macho sentiu o golpe e no contragolpe sentenciou:
- Num quer dançar comigo, entonce, não dança cum mais ninguém.
No castigo a moça ficou, durante todo o baile aquietou-se no seu canto, aguando em vontades de dançar, mas sem poder, da proibição ela não quis desafiar, pois o cabra arrepiado na vigia ficou, atento, disposto a tudo, em nome de uma honra ferida, pouco qualificada, mas respeitada nestes rincões.
Meu pai gostava mesmo era de dançar o cateretê, nas alas formadas ele se destacava, minha mãe, dona de uma alegria contagiante, viveu e morreu lutando pelo bem da família.
Caminho silenciosamente pelas ruelas desertas do meu Capim Santo, e em cada pedacinho avivam lembranças e acontecidos, o passado é um presente no meu presente, minha alma se faz em festas e em tristezas no recordar viver, em festas por estar aqui no meu Capim Santo, em tristezas por ver tamanha desolação.
Quando me deparo com o que restou da casa que fica ao lado da Igreja, uma estranha angustia palpita alma minha adentro, e por um longo tempo fico a mirar e ver aqueles montes de entulhos, aqui morava uma mocinha, flor em botão, a Maria Rosa, meu primeiro amor, e são esses montes de entulhos que me trazem as mais belas e pungentes recordações, que carinhosamente aperto profundamente contra o meu peito, ainda hoje suspiro felicidades quando dela me ponho a lembrar, claramente ainda vejo o dia em que roubei um botão de rosa de jardim alheio e dei pra ela de presente, e ela sorrindo se corou todinha, se disse agradecida, formosa daquele jeito outra nunca vi, e naquele mesmo momento eu dei também pra ela o meu coração.
São estes montes de pedras, tal qual uma musa antiga a contar para o vento passante a estória deste grande e inesquecível amor, que a ingratidão de um sol inclemente que a tudo arruinou e que a tudo destruiu, apartou; retirante fui, para o sul maravilha parti, desencontrado fiquei daquela mocinha, a Maria Rosa, meu primeiro amor, e ela por entre as desolações de outras estiagens se debandou pra um lugar nunca sabido, é dela que ainda hoje sinto saudade.
Meu querido Capim Santo, o que restou de ti? Escombros e mais escombros, ruínas e mais ruínas, agora estou partindo, levando a alma lavada em avivadas recordações, pois a realidade é desoladora, e é com lágrimas nos olhos que te deixo sozinho, abandonado e silencioso, e tudo isto segue comigo para todo o sempre, mas a vida é mesmo assim meu Capim Santo, nascemos pra morrer...