ATRASOS E DESPEDIDA *
Ao percorrer as alamedas silenciosas, de mudas imagens sacras e cruzes, anjos de pedras, capelas e túmulos, na manhã fria, e de chuva fina intermitente, a mente embaralhando sensações, um nó na garganta de soluços aprisionados, e uma incômoda coriza necessitando o lenço, o guarda chuvas adornando a paisagem fúnebre. O pequeno séquito o seguia, na embalagem de madeira, solene de terno e gravata, como jamais o vira antes. Naquela marcha derradeira a primazia da atenção dos presentes, demonstrado no silêncio naqueles passos vagarosos, dando tempo para o carro transportá-lo, junto às coroas de despedidas.
Colocado no túmulo, acimentado, finalizando a sua existência física. Um aperto no peito por não mais tê-lo a esperar-me, sempre impaciente pelos meus constantes atrasos, gesticulando nervoso mas sempre compassivo, como se estivesse com pressa, embora nada tivesse a fazer. Sua silhueta esquálida, protegido pelo sobretudo e o boné escondendo a vasta cabeleira alva, sua figura magra a inspirar cuidados, o seu inseparável maço de cigarros a nos obrigar a buscar a mesa fora do bar. Há tempos não bebia, apenas assistia o bebericar paciente da minha cerveja. A nossa conversa, invariável, era o mais surreal dos diálogos. Forçava-me para ouvi-lo, voz sumida, para dentro. Não raro desviava de minha atenção, como se visualizasse algo, ou alguém, invisível à minha percepção. Fazia pausas fortuitas, dividindo-se com o inusitado interlocutor imperceptível aos meus sentidos, sua expressão peculiar com os olhos ligeiramente estrábicos, como a querer ver-se liberto da companhia que só ele parecia enxergar. Falava, quando se era possível ouvi-lo mais nítido, de um passado cheio de peripécias e aventuras, como a narrar a história de outra pessoa, não a dele, tão pacata e previsível. O ouvia, mesmo desacreditando, como se ouvisse um tio ou um avô, ainda que a diferença de nossas idades fosse de apenas quinze anos. Queixava-se, amiúde, de minhas interrupções em suas narrativas, fazendo-se contrariado, virando os olhos, dando uma baforada mais forte. Alertava-o de não conseguir ouvi-lo, inútil querer separá-lo do tabagismo, de quem dizia que pararia tão logo quisesse, como a maioria o faz diante de seus vícios, isso após pigarrear nervosamente. Assim partilhávamos nossa solidão existencial a dois, ambos imersos em nossas próprias cogitações, paralelas, não coincidentes. Vivíamos em mundos distintos, sem saber como aquela amizade fora alimentada por tantos anos. Apesar disso alegrávamos ao nos encontrar, ainda que nada de novo havíamos a comentar. O que comovia, e ao mesmo momento incomodava, era o seu entusiasmo em me apresentar a estranhos, aparentando prazer em ter alguém para isso, fosse para o dono do boteco, padaria, caixa de supermercado, casa lotérica, comumente fazendo de mim objeto de suas apresentações, então brigávamos. Por vezes parecia que estávamos de relações cortadas, porém nos esquecíamos disso, eu ou ele. Sua característica irascível era ser possessivo, julgava-se meu único amigo, não queria partilhar-me com mais ninguém. De mundos diversos, além de geração diferente, colecionei afetos e conhecidos oriundos de colegas de escolas, vizinhos e empregos. Ele não mencionava ninguém, a não a ser a companheira de mais de três décadas, de quem separara-se na adolescência e se encontraram muitos anos depois. A ela se referia com cuidados, preocupado com o horário de voltar para casa e com as compras sob sua responsabilidade, nutriam ambos uma dependência mútua. Sempre a achei tolerante demais com ele, tratando-o com mimos, feito uma criança. Era uma relação de parceria e cumplicidade, chamando-a, carinhosamente, de Nia. Fora casado e tivera filhos, nisso era reservado, evitava o assunto. Amara o casal de cães, mortos, com os quais compartilhavam a própria cama. Falava com especial ternura de como os encontrou ainda filhotes. Tenho dele um emeio onde reclamava de meu atraso no socorro à sua cachorra, interditado que fiquei no trânsito, como se pudesse salvá-la, mesmo a tendo socorrido em outras oportunidades. Não foi o meu único amigo, ainda que apenas eu estivesse no seu velório, além dos familiares da companheira.
Quando o colocaram no jazigo, despedi-me de meu controverso parceiro de encontros, no partilhamento de nossas vidas diferentes, e que, por alguma razão, nos encontrávamos para conversarmos de coisas diversas e distintas, num entrosamento incompreensível ao bom senso.
Voltei sob os passos entre as estátuas retratando saudades, já sentindo a falta dele a reclamar de meus costumeiros atrasos...
(em memória de Ailton Antonio Costa, * 17/04/1942 + 30/06/2013)
PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, EM AGOSTO DE 2013.