Assassinato do defunto
 
              O Nenzinho é conhecido aqui, no ambiente da Vendinha, por seus destemperos. Cliente habitual que, no mais das vezes, mantém a linha comportando-se como um autêntico trabalhador do campo. Comedido em atos e palavras e, porque não dizer, até mesmo tímido em presença de estranhos, mas que, como qualquer pessoa, também perde a linha. Coisa que acontece em duas situações: Quando provocado por algum frequentador (Normalmente Seu Tinoco) ou quando exagera no consumo da "marvada".
            Lembram-se dos bofetes que ele deu na cabeça daquele careca, para conseguir lugar no trem lotado, no causo "Alfredo?!", que já contei aqui? Pois então, quem em sã consciência, vendo-o aqui, poderia imaginar que alguém assim tão comportado recolhido a seu canto, pudesse cometer tamanho destempero? É, mas quem conhece a peça sabe. O Nenzinho é capaz disso e muito mais! Imaginem vocês o que ele aprontou no velório de um amigo, que morreu lhe devendo uns trocos. Tá difícil de imaginar, não é? Pois bem, eu conto:
            A notícia da morte de "Seu Rosa" chegou à Vendinha por obra do próprio Nenzinho, que entrou por aquela porta anunciando o fato. Na ocasião eu aproveitei o momento para contar a história do falecido. Agora, conto o que ocorreu no velório.
            Então, naquele dia, enquanto todos comentavam o falecimento de "Seu Rosa", de meu lado do balcão notei que o portador da notícia demonstrava uma tristeza fora do normal, que ele tentava disfarçar com doses e doses da "branquinha" de meu tonel. Preocupado com o amigo, indaguei dele o motivo da bebedeira. A princípio ele disse que era, mesmo, a partida do velho companheiro, mas depois de alguma insistência, acabou deixando escapar o real motivo.
            — Não perdi só o amigo, Seu Zé. Perdi, também, todo o dinheiro da venda daquela porcada.
            Em vão argumentei que a coisa não era assim tão ruim coforme parecia, pois a viúva certamente lhe devolveria o dinheiro. Entretanto, Nenzinho inconformado não me deu papo e se retirou.
            Em respeito ao defunto, fechei meu estabelecimento mais cedo e também fui ao velório que, por sinal, estava concorrido. Na sala ampla, em um caixão de tábuas sobre quatro cadeiras, "Seu" João Modesto, como era seu verdadeiro nome, tinha expressão serena. Para falar a verdade, acho até que ele tinha, mesmo, era uma expressão de deboche de toda aquela gente que tanto o infernizara com aquela maldita alcunha de "Seu Rosa" pelo motivo que eu também já contei, em outro causo.
            De um lado as carpideiras, vestindo luto como era o costume, choravam a cântaros, sendo interrompidas, de tempo em tempo, para rezarem o terço. Fora da casa, o clima era mais ameno, os homens menos dados a essas expansões sentimentais, aproveitavam a ocasião para um dedo de prosa, em pequenas rodas. Também tinha aqueles que se punham a filosofar diante do inevitável. É nesse momento que podemos ver, e sentir, a profundidade dos sentimentos das pessoas:
            — É a vida... — dizia alguém.
            — Foi chamado por Deus... — respondia outro.
            Em cada roda alguém contava uma história ou relembrava um fato ocorrido, sempre mostrando o lado bom do morto. Pareceu-me interessante a "filosofada" que ouvi de um caipira, comparando a família do falecido, notadamente os irmãos, a um cacho de bananas:
            — É, moço! A bananeira "bota" o cacho. O umbigo vai se abrindo e as pencas vão surgindo, da primeira a última. Com o tempo, todas as bananas vão amadurecer e cair. Nós só não sabemos qual vai cair primeiro!
            Achei estranha essa comparação, mas com um fundo de verdade. Quando a noite se pronunciou, as pessoas foram rareando. Já me despedia dos amigos, quando um tumulto atraiu minha atenção. Era o Nenzinho que chegara bêbado como um gambá, como se diz por aqui. Aproximei e, aos poucos, fui me inteirando do assunto. O peão, malfadada hora, tentou receber da viúva o empréstimo que fizera ao falecido marido. A mulher, claro, tentou convencer o "pingão" que aquela não era a hora para tratar do assunto, que ele voltasse outro dia para conversarem. Nenzinho não aceitou e, comandado pelo álcool, iniciou um escândalo berrando a plenos pulmões que "Seu Rosa" lhe devia e que ele iria receber de qualquer modo. Muita gente tentou acalmá-lo, mas o homem estava possesso e quando alguém tentou retirá-lo da sala ele se desvencilhou com um safanão, sacou de uma arma, atirou duas vezes para o alto e, cambaleando, passou a apontá-la indefinidamente para os presentes. Foi uma debandada geral. As pessoas se atropelando fugiam através das portas, correndo apavoradas. Quando a sala ficou vazia Nenzinho, a sós com o defunto, espumando entre impropérios, ameaçava:
            — Cê tá me devendo, seu desgraçado! Cê paga agora ou eu lhe mato!
            Depois de um longo período, quando a ameaças cessaram, o povo foi retornando aos poucos e para surpresa geral, a cena que viram foi, no mínimo, digna de pena: O "bebum" debruçado sobre o caixão dormia e roncava feito um porco e a arma, antes ameaçadora, jazia no chão caída sobre as tábuas do assoalho.