ÍNDIA APINAJÉ
O fazendeiro mandou rastrear qualquer sinal felino de grande porte, uma pegada, uma carcaça de presa, o que fosse. Levasse os dias que levasse. Varresse tudo, do grotão de Campo Grande até o grande cerrado de Sete Passagens. Assuntasse qualquer rabeira ou vestígio de animal selvagem por ali. E se encontrasse onça, trouxesse a lembrança do couro amarrado no rabicho da cela.
Negro e manso desde pequeno, Zenofre zunia defensivo como abelha-branca, se assanhassem seu ninho.
— Onça aqui não bebe água, disse ele.
— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...
Pai Luís fica para tomar conta do roçado. Disse Manuelzão. Adelço também não vai, precisa botar sentido na fazenda.
Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.
— Cadê os outros? Perguntou Cláudio.
—Nem sinal de vida. Respondeu Zenofre.
— Melhor assim.
—Inté a volta, patrão!
—Até...
A intenção de Zenofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Fizeram fogo na entrada da gruta. A furna respirava a fumaça, puxava para dentro e depois soltava como João Velho fumando cigarro de palha.
—Evem coisa, disse João Velho, quase em sussurro.
—É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada se ouvia, senão o crepitar de galho verde ardendo no fogo e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.
Arribaram.
Cachorro Graudez latiu longe encomendando tatu. Zenofre ralhou e seguiram marcha. Mais adiante, o vaqueiro parou. Tirou o chapéu, beijou o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e se benzeu.
Os cachorros acuaram bicho no mato.
Agora se espalhem de dois em dois — disse Zenofre — O rapaz da cidade fica comigo. João Velho pode seguir sozinho ou fazer uma trempe com mais dois. Todo mundo amontado. É preciso varrer esse sovaco de serra pisando miúdo, passando pente fino.
O tempo ainda estava turvo, quando avistaram um vulto na copa de uma árvore.
—Não desmonte, disse Zenofre, a onça está acuada.
O destemido vaqueiro desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Cachorro Ninguém ladrava desesperadamente, os outros respondiam longe. Zenofre largou a cravina no chão. Amarrou a lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um cutelo e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Adilson Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar no pau-preto que se movia.
—Não atire! O latido não acusa onça.
Zenofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o animal com a grossa corda. Puxou devagar, sempre dando volta, tecendo uma teia entorno do ser tão semelhante ao humano. Aos poucos foi dominando a fera e já no chão, por um descuido dele, a selvagem mordeu-lhe a panturrilha. Os cães avançaram para estraçalhar a caça. Zenofre repreendeu todos eles e Graudez veio lamber a ferida onde a índia cravara os dentes. Ela balbuciou algumas palavras em língua que ele não conhecia: “Xambioá...Xambioá... Xambioá...Apinajé.” E o vaqueiro perdeu o faro da onça.
Adilson Júnior sujou as calças.
—Esse bicho tá fedendo demais, seu Zenofre! Disse o rapaz da cidade.
—O bicho cheira a caça do mato, respondeu o outro.
Vaqueiro Zenofre uniu as mãos fechadas em concha e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata percorrendo um raio de meio quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu...fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Piruruca perdeu o ritmo da cavalgadura, a tralha e a vareta de açoitar cavalos. Os outros, cada um trazia seu quinhão de medo ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.
—Alguém viu Joselino? Quis saber Zenofre.
Ninguém viu Joselino.
Esperaram um quarto de hora, assobiaram,gritaram o nome dele, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada do vaqueiro Joselino aparecer ou dar ares de vida. Voltaram sem o companheiro. Mais tarde, haveria algum camarada descansado, refazer a trilha e encontrar o vaqueiro deixado para trás.
Espiados por um olho de sol coado entre os galhos da mata, romperam caminho de volta e horas depois, cavalos e cavaleiros riscaram o pé da cancela na sede da fazenda, visivelmente cansados, ansiosos e de boca seca. Era justo o prometido: cada caçador ganhar na volta uma bezerra. Tanto faz ter chegado na primeira hora como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma. À frente da tropa ia Zenofre, puxando a índia, sempre seguido de perto por seu cachorro de estimação. Alguns de casa inda guardavam repouso da noite de ontem. Cláudio acabara de tomar uma xícara de café escoteiro e estava com roupas de dormir, quando ouviu o tropel. Queria saber do sucedido com a caça e com os caçadores.
—Tá ficando maluco, homem de Deus! Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?
—Se comeu, não sei. Mas é uma índia ‘fema’.
— O bicho fala?
—Prezei. Ela dixe. “Xambioá, Xambioá... Apinajé...”
A índia, provavelmente, era da tribo Apinajé e tinha uma ferida debaixo do peito de onde escorria uma resina semelhante à mucilagem da babosa; gosmenta e brilhante como o rastro deixado pela lesma. Taturana, concluiu Cláudio. Taturana queimou o peito da índia.
— Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua para cobrir este animal.
—Nossa! O cheiro é bom, a mulher, feia.
—Que vamos fazer com essa coisa, seu Cláudio?
—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora.
Durante duas semanas a índia só aceitava água e fruta. Foi quando Zenofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário. Vaqueiro Zenofre retirou o relicário do pescoço e deu à índia. Ela pôs no próprio pescoço, em ritual indígena, depois o devolveu. O vaqueiro ficou sem ação. A selvagem gesticulou, disse algumas palavras ininteligíveis e Zenofre percebeu pelos gestos dela, que deveria repetir encenação. E o fez, mantendo o escapulário no lugar onde sempre estivera: no pescoço dele. Eram amigos ou estavam casados, no entender da índia.
—Zenofre, mande Adelço ir atrás do vaqueiro desaparecido, dissera o patrão assim que os caçadores de onça chegaram.
As horas corriam. Joselino sozinho, com a arma atravessada no arção da sela, deparou-se com a fera no despenhadeiro. Dona Euzébia que preparara a matula chorava a sina do filho que em mata fechada, em luta travada entregara seu espírito de vaqueiro ao Criador. “Será que meu filho comeu, pelo menos da paçoca?” E olhava as mãos calejadas na soca do pilão. Distante, viu um vulto cavalgar o trote da vitória.
—É seu Joselino, gritou um menino.
—E traz um couro de bicho na lua-da-sela, pintado, bonito, estampado de preto e amarelo-ouro como chita, disse Euzébia.