O NEGRO COSME OU O COSME, O NEGRO ?
A coisa era mais ou menos assim. Se alguém desavisadamente chamasse: Oh!, Negro Cosme!!! Na certa receberia uma resposta desta magnitude: Negro Cosme é a mãe!!!
Vê se aprende a me chamar direito. Me chame de Cosme, o Negro!!!
E assim mantinha a sua altivez. Sua postura era de um verdadeiro Cosme. De santo nem tanto tinha, mas sempre fazia as coisas com uma santidade incomparável e com uma habilidade profissional, que dificilmente se encontraria no dias de hoje. Sempre bem vestido, asseado, camisa combinando com as calças, bota sempre brilhando, fivela da cinta sempre luzidia, sem contar com o seu chapéu Panamá. Trazia sempre à cinta um canivete muito bem afiado, que dentre as várias utilidades era usado para cortar os bagos dos tourinhos, que fritos à milanesa e sempre acompanhados de uma pinga extraordinária.
Não havia coisa melhor.
Vivia a sua vida de tal forma que todos tinham um carinho especial por aquela criatura. Era sempre sorrisos. Quando abria aquela boca podia-se ver a brancura dos seus dentes e como refletindo a mesma ou até mais ainda a brancura da sua alma. Diziam uns que o Cosme fora nascido de um romance entre o avô do patrão com a filha de um capataz da Fazenda Lua Azul. Coisa de fofoqueiros, mesmo porque a sua mãe, apesar de ninguém a ter conhecido, se levado em conta a aritmética dos anos, era algo com 18 anos mais velha que o avô do patrão, já falecido.
A vida toda viveu na fazenda Lua Azul, desde criança, quando nasceu o filho do seu patrão. Portanto, tinham a mesma idade. Viviam juntos, era nos banhos de rio, nas armações de arapucas, nas pescas de lambaris com garrafão de vinho de fundo convexo, que depois de quebrado com a ajuda do fogo provocado pelo álcool, passava-se um arame até a boca e nele se prendia um arame. No garrafão então, se colocava farinha de milho ou de mandioca, e os lambaris entravam pela abertura convexa na busca de alimentos, e lá ficavam presos.
Ou ainda quando resolviam "pescar galinhas". Isto mesmo. Em uma linha de pesca com anzol fisgavam um grão de milho, o qual anzol era então jogado entre vários outros grãos de milho. Era só a galinha engolir o tal milho fisgado, que estava no papo. Não no papo da galinha, mas dos dois, que depois de assada no espeto fazia a alegria dos dois e dos cachorros perdigueiros. Eram como se fossem irmãos. Só faltava o patrãozinho se chamar Damião. E então teríamos a dupla Cosme e Damião. Um branquela igual leite, outro preto igual à noite. Só que não havia diferença nos dois. Era mais amizade, era irmandade mesmo. Um rico e filho do patrão. Outro, Cosme, o Negro, era órfão de mãe e de pai.
Mas vida era aquela corriola o dia inteiro. E quando chegava a época de apartar a bezerrada era aquela alegria. Como já se tornara costume, cada apartação dava direito a um bezerro a ser criado pelos filhos dos funcionários. Na fazenda Lua Azul, havia 10 empregados. Cada empregado era sorteado com uma cria apartada e o filho, filha ou os filhos se encarregavam de criar da melhor maneira possível. E para não ficar de fora da tradição, também ganhava uma cria o patrãozinho e, lógico, Cosme, o Negro. E não havia maneira de apartar os dois. Nem as crias e nem os dois. Sempre estavam tratando dos seus presentes. Até que um dia resolveram, e não se sabe de onde tiraram esta idéia, fazer uma junta de bois. A primeira providência foi batizar os dois machinhos recém desmamados. Escolheram dos nomes: Pintado e Bordado. Pintado era do patrãozinho e Bordado era do Cosme. De quem mais seria? A junta aprendeu o ofício sem antes dar algum trabalho para os dois aventureiros na lida de amansar e treinar boi carreiro.
Como aquela vez que dispararam fazenda afora, com canga e tudo, e entraram no parreiral prestes a ser colhido. O tempo passou e Pintado e Bordado já eram o orgulho dos dois. A fazenda por sua vez não carecia deste tipo de serviço, posto que possuísse máquinas, carretas, mas para prestigiar a dupla sempre havia alguma empreitada.
Um belo dia houve um convite para participarem da Festa do Divino, e quem iria conduzir a Imagem do Divino, antecipado pelas bandeiras, era o carro de boi puxado por Pintado e Bordado. Satisfação, alegria e orgulho maior não havia. As rodas foram lavadas, os tacões de bronze lustrados pela primeira vez na vida, e Pintado e Bordado tomaram banho com sabão em pó e aos chifres foi dado um trato especial.
O domingo iniciou-se com um foguetório e a procissão tendo à frente os dois orgulhosos garotos, um de cada lado, e parelho com o seu boi. Bordado ao lado de Cosme o Negro e Pintado ao lado do patrãozinho. Enfeitados, comportados, obedientes, fizeram o maior sucesso.
O tempo se passou como se fazem passar as águas dos rios e agora Cosme, o Negro e Evaristo, este era o nome do patrãozinho, já moços feitos, estavam na encruzilhada da vida. Qual o caminho a tomar? Ir para a cidade grande para estudar e tentar ser doutor? Ou ficar na fazenda cuidando do seu patrimônio? Quer dizer, patrimônio só do Evaristo, em que pese Cosme, o Negro, ser criado pela família de Evaristo como um filho, desde que seus pais morreram atingidos por um raio. Ficaram tostadinhos que só. Dava até pena. Nesta época Cosme, o Negro, tinha não mais que um ano de idade. Foi adotado legalmente e passou a conviver com Evaristo com todas as atenções e carinhos. Alguns maldosos os apelidavam de a dupla café com leite. Pura maldade.
Uma noite quando estavam pescando traíras, conversaram sobre o que fazer da vida. Ir para a cidade grande ou ficar na fazenda? Pensativo e racional, Cosme, o Negro, respondeu. Você tem a sua fazenda e eu? Eu vou ter que buscar uma maneira de viver e montar casa e casar. Aqui na fazenda Lua Azul, eu não vou conseguir sequer um pedaço de terra para comprar. Isto calou fundo no coração de Evaristo. Se Cosme, o Negro, fosse para a cidade grande estudar e por lá ficasse, sentiria a falta do quase irmão de sangue, mais irmão de vida e de alma. Se fossem os dois, as coisas seriam diferentes. A pescaria transcorreu como era esperado, não pescaram nada. Nesta arte eles eram uma negação. Por fim a decisão. Chamaram os pais para uma conversa. Não iriam para a cidade grande estudar. Com o que já tinham aprendido, mais os ensinamentos adquiridos dos pais, lhes bastava por enquanto. O coração da mãe quase explode de alegria. O pai fez uma cara de preocupado, mas no fundo, lá no fundinho do coração, desejava que eles ficassem.
Uma tarde que ameaçava chuva forte, uma tempestade braba, Cosme, o Negro, estava tratando de um lote de novilhas nelore que iria para a exposição e Evaristo saíra com o pai para fazer umas compras na cidade. Agora a chuva já era muito forte, uma tempestade, verdadeira tormenta. Um arrepio percorreu a espinha de Cosme, o Negro. Foi como um aviso lhe dizendo que alguma coisa de ruim estava por acontecer. Correu, chamou a mãe, praticamente a obrigou a entrar no outro carro da fazenda para ir em direção de Evaristo e do pai. E foi graças a esta atitude que ao chegarem na ponte do rio Curimbatá, a ponte havia rodado na enchente. Cosme, o Negro, não sabia o que fazer. Acenderam os faróis do carro para avisar quem se aproximasse da ponte. E quando chovia, aceleravam para vencer a subida e, logo após a ponte. Mas seria isto o suficiente? A ponte ficava logo após uma curva descendente, o que de certa forma dificultava a visão. Atravessar o rio? De que forma, com aquela força das águas provocada pela enchente? Pensou, pensou e mais uma vez pensou. Sabia como vadear o rio, um local por onde costumava passar com freqüência, quando conduzia a boiada para outra fazenda. Subiu o rio e lá ficou a olhar e a pensar. Já não tardaria escurecer. Tinha que passar o rio. Voltou, apanhou um laço e mais uma corda de nylon a avisou a mãe de alma e de coração do que iria fazer. O desespero era duplo ou até triplo. O marido e o filho vindo em direção da ponte, o filho de alma e coração se arriscando para salvar os dois. Voltou, amarrou a corda e o laço em uma árvore e depois na cintura, sem antes calcular a largura do vão e o comprimento da corda e do laço. Dava com folga. Aos poucos entrou no rio, a correnteza era forte, mas dava para agüentar. Procurava sempre se manter o mais reto possível em relação à margem oposta. Ia soltando a corda e o laço aos poucos. Era difícil manter esta ligação, pois a corda escorregava muito das mãos. E assim foi uma luta entre a correnteza, o tempo, o medo e vários mergulhos indesejáveis.
Rodou umas quatro vezes, e a cada rodada era um balde de água que engolia. Numa destas rodadas bateu a cabeça contra um tronco e quase que desmaiou. E esta batalha agora já se dava por mais de vinte minutos, o cansaço e o medo agora estavam se fazendo presentes. Aos poucos foi vencendo a luta contra a natureza. E foi quando então Cosme, o Negro, olhou para margem e sentiu de novo aquele arrepio na espinha. Na outra margem aparecia uma luz azul com muita intensidade e podia se ver com clareza três personagens. Todas sorriam e lhe estendiam as mãos. Uma era Nossa Senhora Aparecida, outra era o Negrinho do Pastoreio e outra era a sua mãe. Não conhecera a mãe, mas o seu coração lhe dizia que era ela.
Quando conseguiu subir o barranco, pois havia descido uns 15 metros do vão, buscou aquela luz e as três aparições. Não mais as encontrou. Já era escuro e tinha que correr feito um doido para sinalizar a estrada. Mas como correr naquela escuridão e com chuva? Ao iniciar a corrida pelo mato, não se atreveria a correr pela margem que agora estava invadida pela enchente, notou que havia pequenas pedras brilhando no chão. Eram de uma intensa luz branca e sinalizavam à frente o caminho. O instinto falou mais alto. Corria seguindo as pedras como se fosse uma trilha. Ao chegar à estrada, conseguia ver do outro lado do rio, a mãe na frente do carro, agora desesperada, mais do que nunca. Gritou, gritou e ela por fim conseguira vê-lo e acendeu os faróis do carro, para auxiliar na sinalização.
E Cosme, o Negro, então iniciou a sinalização da estrada. Lá no alto da estrada, antes da curva. E quis o destino que as coisas se sucedessem como estava escrito no livro do destino. Já enxergava a luz dos faróis, ainda longe, isto lhe dava um certo alívio. A estrada sinalizada. Eles haveriam de parar. Colocara alguns galhos de árvores, mais algumas pedras, eles teriam que ver aquela sinalização e parariam, além do que ele estaria sinalizando com os braços, para que parassem. E eles foram se aproximando, com velocidade reduzida e quase parando, quando viram Cosme acenando sob aquela chuvarada. E então o inusitado aconteceu. Um raio atingiu uma árvore. E uma faísca, por sua vez atingiu Cosme, o Negro. O barulho foi assustador. Correram e lá caído no meio da estrada, todo enlameado, o corpo do irmão e do filho da alma e do coração se mantinha paralisado. E foi então que a luz apareceu. Aos poucos o corpo caído na estrada foi se levantando e ouviu-se uma voz: "Filho amado, que esta luz ilumine os seus passos e a vida do seu irmão e de seus pais".
E hoje, homem já feito, Cosme, o Negro, ainda mostra a cicatriz em forma de uma estrela, bem cima do coração. Mas não perdeu a mania de responder, quando lhe chamam de Negro Cosme:
"Negro Cosme é a mãe". Vê se aprende a me chamar direito.
Me chame de Cosme, o Negro!!!
Romão Miranda Vidal.