156 – O PAPAGAIO ENREDEIRO...
Raimundo Porfírio morava no mundão do Quelelém, homem trabalhador, trabalhador ao extremo, tão dedicado à labuta que colocaram nele o apelido de burro de carga. Mas ele era feliz na sua maneira de ser, além de trabalhador possuía duas riquezas que muito prezava, a sua esposa, uma mulher alourada que era uma cozinheira de mão cheia, e um papagaio boiadeiro, que gostava de papagaiar tudo o que ouvia.
Antes de o sol nascer o Burro de carga já estava na capina, estava no arrumar das cercas, estava no plantar, estava no cuidar das plantações, estava no colher e nesta labuta contínua eram felizes os seus dias.
Entretanto a sua mulher não estava plenamente satisfeita com o seu desempenho, e não se tratava dos serviços onde o seu desempenho era dos melhores, mas era na cama aonde deixava a desejar, talvez pelo cansaço do dia a dia, talvez por este ou por um outro motivo, o certo é que no vamos ver, o seu desempenho não era lá aquelas coisas.
E essa mulher passou a sonhar, sonhava, se via nos braços de um moreno queimado, tirador de leite da outra fazenda, que todos os dias passava pela estrada em frente a sua casa, e sempre levando um latãozinho de leite.
No começo ela o espiava pela fresta da janela, depois passou a debruçar na janela assim que ele passava, depois além de debruçar na janela cantava doces melodias pro moreno encantar.
Juntando a fome com a vontade de comer, sabendo que o homem da casa estava no serviço, na desculpa esfarrapada de pedir um gole de água ele esticou conversas com a dona do Burro de carga, e a conversa mais que esticou, esticou tanto que foi convidado pra entrar na casa, e ele entrou todo maneiro, faceiro e cheio de esperanças, fazia uma gracinha daqui e ela outra dali, sorriam, transpiravam desejos, e ela não sabia mais o que fazer para agradá-lo, e as coisas tomaram o rumo que desejavam, e num repente os dois já estavam pelados na cama a rolar.
E ele virou freguês, não faltava um só dia ao encontro, e ela apaixonada o chamava de Nego, era meu Nego pra lá, meu Nego pra cá, meu Nego gostoso, meu Nego fofo, e o papagaio que a tudo arreparava e escutava, começou a emitir uns sons que em muito parecia com o som da palavra nego, o Burro de carga chegava ao anoitecer, tão cansado, tão cansado que o coitado pouco tempo tinha para a sua esposa, além do tempo que perdia com o papagaio que gostava dum cafuné, gostava de ser coçado no alto da cabeça, fechava os olhos e até revirava o pescoço naqueles momentos. E repentinamente o papagaio olhou para o Burro de carga e gungunou:
- Neeeeeee, Neeeee, Neeee!
O burro de carga não entendia, e até o imitava nas gracinhas, mas a mulher não via com bons olhos aquilo, principalmente porque ela sabia o que ele queria dizer e odiava aquele papagaio.
E o tempo assim foi passando, o moreno desfrutando das carícias da mulher, e o papagaio treinando assiduamente no duro ofício de aprender a falar a palavra nego, queria porque queria alertar o seu dono dos chifres que ele estava carregando na testa, até que um dia a mulher o surpreendeu falando quase que perfeitamente a palavra nego, histérica, imediatamente o agarrou pelo pescoço e deu lhe umas sacudidelas, umas rodopiadas que fez com que voasse penas pra todos os lados e o advertiu:
- Se você pronunciar mais uma vez esta maldita palavra, eu juro que faço de você, picadinhos na minha farofa!
Mas o Tinhoso sempre encontra um meio de ajudar as desgraças acontecerem, persistiu junto ao papagaio incentivando-o a tagarelar, e este apesar de ressabiado e amedrontado ante a ameaça da patroa, mesmo assim insistia no escondido na árdua labuta para pronunciar aquela palavra, e numa tarde dessas quaisquer, finalmente o louro desembuchou, desencantou, falou no ouvido do seu dono aquilo que tanto pelejou e de tão difícil aprendizado, por fim em alto e em bom tom ele conseguiu pronunciar a bendita palavra:
- Neeegooo, Neeegooo, Neeegooo!
O burro de carga abriu os olhos, abriu também os ouvidos, ouviu uma, duas, três vezes aquela fatídica palavra, e ele se pós a matutar o significado daquilo, que diachos o louro queria dizer, aquele papagaio não seria capaz de inventar, ele simplesmente repete os sons ouvidos, depois de muito matutar, mas muito matutar mesmo, clareou na sua cachola que aquela palavra se referia a uma pessoa, e que esta pessoa seria muito conhecida na sua casa, que frequentava a sua casa com assiduidade, e ele foi ligando os fatos e acontecidos, certas manchas roxas que ele viu no corpo da amada, que ela alegou ser o resultado de um tombo, agora olhando por outro lado bem que poderiam ser resultado de umas mordidas, a cama sempre desarrumada como que ali uma batalha corporal tivesse sido travada, juntando um acontecido aqui e com outro dali, desembrulhou nos seus miolos a ideia, a sensação que esta sendo traído, e viu na sua testa crescerem longos e contorcidos chifres, na certa outro estava dormindo com a sua amada e desfrutando de suas carícias, ele que tinha a cara de bobo, mais abobado se comportou naqueles dias que se seguiram.
No amanhecer, como de costume, levantou cedinho, a mulher preparou a sua boia, foi até ao roçado, e sorrateiramente voltou para as cercanias da sua casa, e se colocou de sentinela no escondido.
E o moreno após tirar o leite, a toda pressa vinha pelo estradão e logo logo foi adentrando na casa do Burro de carga e por um longo tempo lá dentro ficou arranchado, pra depois se despedir da sua mulher nos abraços e beijos.
Vendo com os seus próprios olhos o tamanho da sua desgraça, o burro de carga chorou, lamentou consigo da sua fortuna, mas teve a perspicácia, matutou primeiro, manobrou os pauzinhos dentro da sua cachola, cresceu em desejos de vingança e concluiu que toda aquela traição não ficaria sem uma resposta à altura, aqueles dois sem vergonha teriam que pagar, mas pagar caro pela perfídia.
Teve paciência, costumeiramente esperou até o anoitecer pra voltar para a sua casa, a esposa com a janta já preparada, e o papagaio nem esperou pelo cafuné habitual, e nos seus ouvidos enredava:
- Neeegooo, Neeegooo, Neeegooo!!
O burro de cargas se amaldiçoou por não possuir uma arma de fogo, se tivesse, iria furar os dois era na bala, mas quem não tem cão caça com gato, buscou na dispensa uma mão de pilão, ajeitou um pequeno chicote de cabo reforçado, de fácil manejo, deixou tudo no escondido e foi dormir seu justo e merecido sono de batalhador.
No outro dia, apressado nos seus afazeres, disse à esposa que iria trabalhar no bem distante, nas divisas ultimas de suas terras onde iria arrumar umas cercas de arame farpado, e que passaria o dia todo por lá. A arapuca estava montada, agora só faltava o moreno e o moreno não tardou, chegou e já foi logo entrando casa adentro, correndo pros braços da mulher.
E o tempo foi passando lentamente, parecia uma eternidade pro Burro de carga na tocaia, finalmente ele abalou, carregando no ombro o chicote e na mão a mão de pilão, sorrateiramente adentrou na sua casa no pé por pé, onça pintada espreitando uma queixada, silenciosamente tal qual o voo de uma coruja, e com toda a calma do mundo avançou quarto adentro, e o que viu? Viu os dois pombinhos completamente pelados aos abraços na sua cama!
Neste momento o burro de carga ficou completamente ensandecido, levantando pro ar a mão de pilão e com ela desfechou um golpe com tamanha violência nas costas do moreno que a mão de pilão espatifou, e o moreno na surpresa estampada na dor se contorceu, contorcendo pro lado da cama se estatelou no chão e chicote comeu alto e solto.
O moreno se arrastando de quatro pés rumo à saída do quarto, não conseguia ficar de pé, estava sem fôlego, faltava o ar, tamanha era a dor da pancada, fungando, gemendo, foi se escorregando pelo chão, parecia insensível às chicotadas que estalavam no seu corpo, das vezes se defendia com os braços e pernas, e depois de muita peleja desembocou pela saída da casa, contorcido, um tanto abaixado, mas já refeito da dor se aprumou e na pressa ligeira debandou estrada afora, todo peladão, mas isto não importava, o que importava é que ainda estava vivo, e bem vivo, naquela correria desembestada nem cachorro perdigueiro seria capaz de alcançá-lo.
O Burro de carga então se voltou contra a sua esposa, ia chicoteá-la até a morte, ia esganá-la, ia assassiná-la, e ela toda encolhida sobre a cama, embrulhada num tosco lençol que abruptamente lhe foi arrancado, expondo na nudeza toda beleza daquele corpo marmóreo, de belas formas e curvas insinuantes, aquele corpo que tanto ele amava, e chicote no ar rodopiava estalando, repentinamente o chicote se fez pesado, parecendo que da força tivesse sido desprovido o Burro de carga, tão pesado ficou que no corpo dela o chicote não estralou, ele sentiu piedade da sua mulher, das suas entranhas aprumou ternuras para com ela, ele ainda a amava, ainda a desejava como sempre desejou em toda a sua vida, então calmamente deixou o chicote cair no chão e disse pra que ela arrumasse as suas coisas, deu pra ela alguns trocados de dinheiro, e apontou o estradão, e ela espavorida numa aloucada caminhada foi se desfazendo na distância dos seus olhos de já umedecidos de saudades, sentiu vontade de implorar para que ela voltasse, mas o momento já era outro, e já era tarde demais para uma reconciliação.
E o tempo foi passando, o Burro de carga mais e mais se apegou ao papagaio, pra todos os lados que andava carregava o dito cujo, que por um longo tempo só sabia falar:
- Neeegooo, Neeegoo, Neeegooo!
Mas o tempo é o melhor remédio pra todos os males, o papagaio morreu de antigas velhices e numa festa de São João, uma morena esticava os olhos pro Burro de carga, e este foi logo com ela conversar e a convidou pra ir morar no seu barraco, e ela sorrindo aceitou... Mesmo assim, tempo passado, quando ponteava a viola, batia no seu peito uma saudade danada da mulher primeira... E ele como que acordando de um sonho, balançava a cabeça lastimando do acontecido, guardava a viola contristado, mas a melodia continuava ecoando mundão adentro da sua alma, sentia saudades também do papagaio...