O bigode do vovô

Aeroporto e funeral já não me atraem e perdoem-me, antes de julgarem, mas conheci um sujeito que não perdia esse último. Ledor assíduo dos obituários nos jornais, era presença constante nos cemitérios e capelas. Participava ativamente, pesquisava os antecedentes do defunto ou defunta e ao lado dos parentes ficava à vontade, confortava-os, quase chorava junto. Foi assim que conquistou viúva rica e foi viver em Paris, in dolce far niente. Não fiquei sabendo se continua a frequentar velórios.

Eu, na juventude, gostava, e muito, deles, principalmente dos gurufinhos (para os menos intelectuais, era a cerimônia de velar o malsucedido nas favelas e nos morros), onde “bebia-se o defunto”, tocavam-se as músicas e gêneros de sua preferência, cantorias pela madrugada adentro e o dito cujo lá na sala, só e acompanhado pelas flores e pelo cheiro do sebo das velas queimando. Ao amanhecer, chegava outra tropa, sóbria, essa incumbida de descer o caixão, pois a do velório já havia se dissipado.

Com a modernidade e com a violência, acabaram-se tais eventos em que a comunidade aproveitava para discutir seus exacerbados problemas, pelos eflúvios, e encontrar soluções, nunca alcançadas. No último a que compareci, o finado sentou-se no caixão, deu um berro, que ecoa até hoje, e deitou-se novamente. Não ficou ninguém e até então não sei o desfecho, pois nunca mais subi em morro, nem fui a velórios.

Quanto a aeroporto, tenho verdadeiro pavor daquela imensidão de gente, malas, filas enormes, atrasos, todos estressados, ambiente onde reina a impessoalidade, pilantras em quantidade e de toda a espécie, exigindo total atenção, um lugar em que, num descuido, perde-se a viagem, a carteira ou a mala, sem falar na máfia dos taxistas. Enfim, prefiro ficar no meu canto e assistir à balbúrdia pelo noticiário, que se repete todo momento e a cada feriado prolongado ou humores climáticos.

Mas agora fui convidado, ou melhor, intimado para comparecer à cerimônia de desenterramento dos ossos de meu avô, em outra cidade e distante, do qual poderia declinar se não houvesse um fato ao qual minha avó, mulher do distinto, está dando muita importância, qual seja resgatar seu bigode, pois ouviu falar que os pelos não são consumidos. Como a calvície já o tinha escalpelado, ainda vivo, restou o bigode, enorme, que a santa senhora quer pôr as mãos. Não perguntei a ela, mas aos familiares, o que será feito com tal peça e fiquei sabendo que vai ser entronizado numa herma da cabeça já feita e posta na sala do casarão, em lugar de destaque! Não podia deixar de ir, pois era muito ligado a ele e ela ajudou em minha criação.

Aprestei-me, passagem comprada, fato preto e eis que, ao chegar à rua, sou abordado por Neném Prancha, figura mitológica das areias de Copacabana, crítico ácido da classe política e filósofo de plantão: “pênalti é assunto tão sério que deveria ser batido pelo presidente do clube”. Botafoguense doente, convidou-me a assistir ao jogo que está se iniciando, com participação de estrela internacional, comprada com vaquinha da torcida, sendo adversário o Vasco da Gama, do qual sou aficionado e, claro, “ tomar umas e outras”. Irresistível a cena, conversar com Neném, assistir ao jogo e “umas e outras”. Aquiesci e lá fomos para o boteco, na Atlântica. Tinha tempo, já que o voo seria bem tarde, corujão, mais barato.

Assim seguiu-se o ritual e lá pelas tantas, sem muita certeza de poder “fazer um quatro”, dada a quantidade de muitas outras ingeridas, eis que desaba um toró, alagamento generalizado, tudo parado e lá se foi a viagem e, claro, assistir à exumação do que restaria do vovô. Quando consegui contato com a parentada, tomei um choque: vovó, no cemitério, ao deparar-se com os ossos de seu eterno e querido marido, por quem guardou luto perene, foi acometida de ataque apoplético extremo e faleceu ali mesmo. Transmitidos os votos de estilo, fiquei sabendo de seu enterramento imediato (livrei-me de quatro aeroportos) quando, já desligando, lembrei-me do bigode do vovô. – Que foi feito? – “O bigode? Não sei”.