Não lhe conheço
A Virginia era uma mulher que nutria grande desprezo e um pouco de ódio ao marido. Tinha casado naqueles termos de conluio de pais, prometida desde pequena para um futuro mórbido.
Logo depois da lua de mel, o marido bruto arrumou emprego de caminhoneiro, levando a madeira extraída na região até o Rio Uruguai. Uma viagem de uma semana no máximo e o dito cujo levava um mês para voltar para casa, e voltava sem dinheiro. Nos primeiros anos de casamento tudo era muito amoroso e fácil, mas depois das chegadas imprevistas e longas ausências a Virginia tinha quase um asco ao escutar o ronco do caminhão estacionando na porta da sua casa.
Era como se ela recebesse um estranho, que comia, bebia, trazia um fardo de roupa suja e outro de roupas que ela não sabia de quem eram e que recendiam a bebida e perfume barato. E depois ainda queria o sexo com ela, como se estivesse com saudades. Sentia-se usada e quase sozinha não fosse o trabalho que tinha arranjado na casa de uma patroa rica para poder sustentar-se.
E quando o marido lhe perguntava como é que ela conseguia as coisas para dentro de casa ainda dizia que mulher dele não precisava trabalhar. Ficava muito nervoso quando ela então lhe pedia dinheiro para os suprimentos, indo embora no seu caminhão assim, sem eira nem beira e sem adeus. Isso era um alívio à Virginia, que adotou então esse método assim que o marido chegava a casa. Mas como nada dura para sempre, o homem passou de emburrado e fugido para surdo temporariamente, pois na cama queria que ela lhe sussurrasse indecências em seu ouvido.
Tinha que tomar uma atitude. Não aguentava mais a presença daquele machista infame e naquele mês de marido ausente, pensou, pensou e chegou à conclusão de que era necessário um pouco de burrice e um tanto de loucura. O plano era perfeito. Pela primeira vez na vida esperava o dito cujo com uma ansiedade de cão esfomeado.
Então chegou o dia mais feliz da vida da Virginia que segurando o riso para dar cabo ao plano não abriu a porta quando o marido chegou, ao contrário, foi lá rapidamente e fechou à tranca. O homem, notando a porta fechada, tentou girar a maçaneta sem sucesso e como não tinha as chaves - pois que a mulher lhe abria antes mesmo de ele desligar o caminhão - começou a bater na porta. Bateu tanto que considerou a hipótese de ela não estar lá para abrir. Ficou esperando algum tempo, tempo que considerou uma afronta quando, num rompante a porta se abriu e num esgar de louca a mulher lhe pediu: “Sim?”
Como “sim”? Ele queria entrar e ela não deixou. No segundo em que ele fora praticamente enxotado da soleira foi que percebeu que a mulher estava vestida com as roupas dele e com os cabelos imundos de farinha. Aquela visão lhe assustou e pensou por um momento que tinha errado de casa, mas logo recobrou o raciocínio e a chamou de “meu amor”.
“Não lhe conheço!” Disse a Virginia com uma risada de hiena e em seguida fechou a porta a tranco.
O marido bateu de novo e foi advertido de que se ele insistisse, ela chamaria o delegado e gritaria aos vizinhos que fossem acudi-la. Virginia com as costas na porta segurava a mão em sua boca para que ele não ouvisse o riso de vencedora. Fechou os olhos e desfrutou com deleite o rugido do motor e o bufar do marido indo embora.
E assim ela procedeu por uma semana a fio: aparecia ao marido cada vez pior em sua aparência. Na quinta-feira pôs uns óculos emprestados da patroa e vestes muito maiores que seu número e na sexta-feira apareceu com os cabelos vermelhos. E todas as vezes que atendia a porta, dizia:
“De novo o senhor? Eu não lhe conheço!”
O marido partiu e dessa vez ficou seis meses fora de casa, e quando voltou Virginia procedeu exatamente como antes e o enxotou porta afora.
No dia seguinte reaparecia o marido com mais três pessoas vestidas de branco. Arrombaram a porta, seguraram a Virginia e meteram uma injeção em seu braço que custou a cicatrizar. Ela acordou numa cama, com os braços e as pernas amarrados à cama, totalmente inerte. Ouviu da boca do marido o veredito do seu plano falho: “Claro que você me conhece.”