O Casarão Centenário e o Shopping Center

O Casarão Centenário e o Shopping Center

A velha casa seria deixada para trás. Insistiu nessa idéia,e de forma irredutível. Era um casario de época imemoriável. Tinha grandes portas e janelões. Um sótão no alto era usado para guardar quinquilharias.E, ali era o seu refúgio para leitura de livros e para momentos de reflexão. Com o advento da internet havia decidido jogar fora muitos livros empoeirados e revistas antigas. Um mundo de baratas e ratos calungas se revelaram-foram despejados. Impressionava-lhe a presença de um morcego - um único - que por décadas dava um vôo rasante na madrugada pelo corredor e se instalava no sótão. O morcego entrava e saia pelos espaços disponíveis nos vitrais coloridos dos janelões. Algo o mantinha preso àquele casarão antigo.Ali, passava mais horas do que no seu belo apartamento num bairro chique.Estranhou a sua mudança de comportamento de uma hora para outra.Há décadas tentou ser um leitor voraz,ao ter descoberto que na família havia um descendente que fora escritor no Brasil colonial. Havia descoberto um dos seus livros,conseguira ler algumas páginas.Tinha preguiça mental para a leitura.

- Eu vou vender o casario. Existem um interessado, querem colocar aqui um bar estilizado.

“Mas meu filho, esta casa esteve com nossa família há séculos. Pertenceu ao seu bisavô,e tinha sido herança de parentes mais antigos. As nossas raízes estão aqui.”

Pensava assim, como diria a sua velha bisavó,caso estivesse viva-muitas histórias contavam a seu respeito.Era muito apegada às coisas da família.

Os móveis rústicos foram mantidos com o passar dos séculos. As mesas de refeições,pratelheiras,guarda-roupa,camas eram de madeira de lei-jacarandá,umburana, e de outras extintas da mata atlântica. Uma fonte jorrava água cristalina numa das dependências, próximo da cozinha. O casarão se mantinha resistente ao passar dos séculos-poucas foram as reformas realizadas,contudo,manteve-se a sua estrutura física e demais características.

Os corredores eram assustadores,diante das madrugadas. Muitas das crianças ali criadas tinham pânico, em ter que atravessá-los para irem ao conjuntos banheiro que ficavam nos fundos. Eram mal iluminados – a pedido da atual matriarca Clarice Cristovão- mantiveram as antigas luminárias do início do século passado.Eram acendidas com querosene.

- As pessoas nas ruas são bem diferentes de nós, vovó. Deparei-me outro dia diante de uma máquina estranha que eles chamam de notebook e,magicamente te leva a passear pelo mundo e a se comunicar com as pessoas á distância,acredite.

Dizia Lídia, a sua neta predileta.

- Elas se vestem diferentes-por quê vovó?

- A devassidão e a desvalorização dos bons costumes não vão atingir as mulheres desta casa,queridinha. Sei como é o mundo la fora-estou assustada.Precisamos manter a nossa tradição. Somos uma família tradicional.Temos valor.

- Mas, vovó, até quando vou ter que vestir roupas feitas pela senhora e ter calçados feitos pelo vovô? Os tempos são outros.Existe uma coisa chamada de shopping center, onde todos compram suas roupas e calçados.Estou cansada desta casa,de tudo e de todos. Eu quero mudar.

Haviam deixado de usar a água da fonte para o banho e para a cozinha. O local estava isolado,apesar da água cristalina,ali continuar a jorrar. A fonte era de pedras,passava um pequeno braço de rio no fundo,talvez. A água era tirada numa tina de madeira amarrada a uma corda.

- Um parente nosso quer vender a casa. Não vou permitir. Ainda não é o momento.

- Deixe ele vender, e vamos embora,daqui,vovó. Estou cansada deste lugar.Parece parado no tempo.

Lídia cruzou o grande corredor. Chegou à entrada da fonte,ali ficou estática.Todas as vezes que se aproximava do local, o seu coração disparava. A respiração se tornava difícil. Algo a burilava.

- Lídia, querida não se aproxime da fonte,por favor. Ja te disse para não fazer isso.

A porta da frente rangeu. Era uma porta pesada, e de difícil manejo. Entraram.

- Lídia, minha querida, chame o seu pai. Eles chegaram,podem ser perigosos.Vamo-nos esconder num dos quartos no fim do corredor.

- Eu quero o imóvel.

Disse o senhor de paletó,tinha postura de empresário.

- A família o abandonou. A vizinhança diz que tem fama de assombrado.

- Bobagem,não acredito em fantasmas.

- Uma bela fonte. Aqui poderá ficar localizada a cozinha,como era no passado.Conheço a história do casarão. Muitas foram as matérias na TV, e até em livros didáticos de história ele é citado. Pertenceu áquele poeta,como é o nome dele,mesmo?

- Castro Alves, o autor de Navios Negreiros.

- A sua família nada lhe contava a respeito do casarão?

- Não, depois da morte da menina na fonte no início século passado,a minha família o abandonou,e evita-se falar nesta casa que nos causou tamanha tristeza no passado.

Lídia chorou. Não havia corrido para o quarto no fim do corredor,como de costume. Havia escutado a história de sua vida através daqueles homens estranhos que sempre invadiam a casa. A verdade era outra.

- Querida,desculpe, eu não tive coragem em lhe falar. O seu pai e a minha netinha não estavam preparadas para saberem da verdade, então, eu voltei para buscá-los ,contudo,fui ficando,ficando...

- Precisamos partir, mamãe. Eu tive coragem e fui la fora. Tudo está diferente. Resolvi vender a casa.

Disse.

- Precisa acordar, se quer partir. Está há anos pensando e agindo como seu bisneto,meu filho. Precisa partir os fios que os une fantasiando para você uma sobrevida material de uma existência já perdida há séculos. Peço que me desculpe por não ter tido a coragem de revelar-lhe a verdade. Muitos ficam transloucados,desesperados quando descobrem a verdade, e que a vida que possuem não passa de um mero delírio,feito um casario em meio a prédios de luxo e um shopping center.

A menina sentiu um alívio no seu coração ao poder ter saído do casario antigo.Lançou o olhar seco para o shopping,soltou-se das mãos da avó e seguiu na direção do shopping center.

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 27/06/2013
Reeditado em 18/09/2013
Código do texto: T4360788
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