"OLHOS DE ALUMBRAMENTO"

O tal Zé Passarinho, com o seu bigodão enorme agora com uma mosca grudada nele, disse pra mamãe: Vou ter de deixar vocês aqui.

Dona Eleontina, pois que o caminho que sigo é muito diverso do vosso”. Mamãe se despediu e o homem me sorriu acenando e prometendo que da próxima vez que fosse à minha casa levaria uns passarinhos fritos pra eu experimentar e, como última coisa, ele disse que era pra eu não esquecer que quando crescesse ia me casar com ele.

Preferia casar com o primo Adalgiso.

Eu que nem nunca mais queria ver aquele homem de novo! Já na casa de madrinha foi uma alegria só.

Ela ainda capengando se embrenhou na cozinha com mamãe, tramando de preparar bolinhos de chuva que eu tanto gostava.

Depois de algum tempo e um mundaréu de prosa as duas voltaram e puseram os bolinhos, café, chá e leite na mesinha feita de pau de arar na sala onde tava entrando uma vizinha da madrinha com duas filhas meninas mais ou menos da minha idade.

As crianças usavam uma roupa tão velha e suja que eu até tinha medo de ir comer depois delas: me atirei na frente e catei logo um punhado de bolinhos com as duas mãos.

Mamãe de pronto ralhou comigo, mas a madrinha justificou que eu adorava aqueles bolinhos.

A noite já havia adentrado a casa, cujas paredes me fascinavam.

Não eram como em minha casinha, cheias de retratos e imagens. Havia nas paredes da casa de madrinha um branco quase que absoluto. Digo quase porque se por um lado havia abundância de nada nelas pregado, por outro havia enormes manchas de encardido incrustadas nelas.

Exagero em dizer que não tinha nada nas paredes; havia sim um enorme crucifixo com um pequeno terço em volta, no exato Cedro de toda parede que dava pra porta de entrada, como se aquilo representasse a arma protetora daquele lar.

Mas se tinha esse bloqueio santo impedindo o mal de entrar na casa, por onde entrou a chaga que castigava a madrinha? Na verdade eu nem não queria entender essas coisas, mas via cada vez mais necessidade de ter de entender, porque agora eu tinha um chupinzinho pra cuidar, e ele que não sabia de nada disso.

Fui interrompida em minhas divagações por minha madrinha, que me perguntou; - Pensando na morte da bezerra, Drica?"A atenção foi mais atraída pela fala do que pelo nome que ouvi.

Em seguida mamãe noticiou que a gente ia pousar na casa de madrinha naquela noite.

Fiquei triste: seria mais tempo longe do meu chupinzinho.

Antes de dormir todos rezamos o Pai Nosso.

Ao raiar do dia fui acordada por mamãe, que me mandou ir tomar banho na ribeira ali perto.

Fui com as duas meninas que já estavam acordadas esperando. Parecia coisa combinada.

Os nomes delas eu já sabia: Angelina e Faustina.

Tomado o banho, com roupa suja e tudo, voltamos pra casa da madrinha, pra no momento seguinte ir preparar o almoço.

Ficamos as três encarregadas de buscar as frutas e verduras. No meio da horta, vi uma revoada de aves que Angelina disse ser as avoantes. Continuei com minhas dúvidas, que guardei pra hora do almoço.

Perguntei à madrinha porque existiam tantas aves daquelas lá fora. A madrinha começou a contar que aquelas aves eram chamadas de avoantes ou ribaçãs, e que elas vinham de um lugar muito longe, dalém do oceano.

Disse também que as pessoas tinham de matar algumas dessas aves porque elas eram muitas e, se deixasse, acabavam com toda a lavoura.

A madrinha disse que os outros vendem as ribaçãs na feira, nos bares de todo o jeito: vivas, mortas e depenadas, assadas etc.

Aquelas palavras me fizeram pensar no chupim. Será que eles vivem em bandos e fazem muito estrago pelas hortas? Eu nunca que tinha visto chupim em bandos; apenas de pouquinhos.

Depois do almoço nos despedimos da madrinha, ao que ela me disse que gostava muito de mim, mas não ia mais me visitar porque não conseguia caminhar há muito tempo: suas pernas não agüentavam mais.

A última coisa que eu me alembro dela ter falado é que um dia eu também ia ficar velhinha daquele jeito e então entenderia do que ela falava. Partimos pra cidade.

A cada caminhada eu sentia como se tivesse indo cada vez pra mais longe do meu chupim.

Eu não sabia onde iríamos parar; nem não devia de saber.

O caminho era tão bonito I Tudo era bonito.

Caminhamos por uma estrada que parecia não dar em lugar nenhum.

Por mais que eu sustentasse a visão não achava o fim daquela estrada, que era acompanhado de uma quantidade infinita de árvores de todas as espécies de frutas que já tinha visto e jamais veria em toda a minha vida.

Os generais estavam por todo canto.

Mamãe contou que aqueles arredores eram comandados por majores que compravam suas patentes, como o major Antônio Bento, o major Levi gildo e falou outros nomes estranhos.

Parecia que mamãe não entendia as próprias coisas que ela falava - nisso a gente tava igual.

Em pouco tempo veio por trás de nós um caminhão muito velho e sujo. Parou.

O motorista perguntou se a gente precisava de carona; mamãe disse que sim.

A estrada ainda parecia eterna e olhando pela janela traseira do carro só se via o passado envolto na mais alta poeira.

Tudo ia ficando pra trás. Finalmente chegamos à cidade grande. Fiquei encantada com a feira de tão grande e agitada que era, logo ali na entrada da cidade.

O motorista disse que ela tinha de tudo, pois era rota de tropeiro. E eu nem não tinha idéia do que era tropeiro.

A feira era enorme. Nunca que eu não tinha visto tanto animal diferente junto, tanta fartura de comida na vida.

A ovelhinha - não sei se era carneirinho ou o quê! - era tão pequenininha... por que prender um bichinho tão pequeno e dócil com uma corda grossa daquela no pescoço? Por todo lado aquele povaréu com um monte de caras que eu também nunca que tinha visto antes.

O homem vendendo balões de todas as cores e tamanhos, as verduras e frutas aos montes.

Se de fartura elas estavam nas batatas maciças, de plenitude e contentamento elas mesmas empurravam outras para fora, o que fazia a alegria de alguns sacoleiros que não podiam comprar, mas queriam catar as sobras no chão... Os pregões... Tudo era uma explosão de vida e de cores, até mesmo os trapos velhos e multiformes que os matutos compravam ou trocavam por seus mantimentos e aquele monte de ave pelada nas feiras que os feirantes colocavam dentro dos jacás, o que me fez lembrar das ribaçãs que a madrinha tinha falado.

Tudo era motivo de maravilha pra mim.

Passamos por dentro daquele espetáculo todo e eu que nem queria nada ainda ganhei um prendedorzinho de cabelo dum velho muito falador e engraçado, que perguntou se eu queria casar com ele.

Respondi com a cabeça que não, então ele, mais duas velhas pretas que socavam alguma coisa em pilões gigantescos, começaram a dar uma bruta duma gargalhada.

O velho virou pra mim e me deu o enfeito.

Mamãe fez com a cabeça que eu podia pegar o presente e seguimos o caminho, ouvindo o som da caçula ficar cada vez mais baixinho.

Depois de tanta caminhada e alumbramento chegamos em uma estradinha fina e toda calçada com umas pedras coloridas, que dava pra uma escadaria que levava pra uma igreja muito grande e bonita.

Pensei que ali era a casa do Papa, de quem papai sempre falava com o tio Berício.

Mamãe perguntou o que eu tava achando daquela beleza que eu via, na minha frente, então lhe disse que nem não podia olhar direito de tão grande e bonita que era, então mamãe me disse que a gente ia entrar lá dentro da igreja e eu perguntei se o Papa ia perguntar se eu ia casar com ele.

Foi a primeira vez que mamãe riu com gosto depois de tanto tempo da morte de papai. Mamãe riu e chorou.

Riu e me abraçou ali mesmo na escadaria. Depois de um abraço tão gostoso e demorado, ainda limpando as lágrimas ela disse soluçando: Fia, você é a coisa mais querida da minha vida!".

Eu nunca que tinha visto mamãe daquele jeito.

De pronto lembrei do meu chupim e de quanto eu queria

bem o danadinho.

Acho que era assim que mamãe gostava de mim, sem querer nada de mim, só a minha alegria, porque voar eu nem não podia.

Entramos na igreja e meu encantamento foi ainda maior: tudo era enorme até pra mamãe.

Eu olhava pra todos os lados e só via imensidão e ouro e prata e pintura de um monte de santo - sei que era santo porque mamãe falou isso. Ficava querendo saber como os homens, ou o Papa, tinham subido tão alto pra pintar aquelas coisas lindas e escrever aquelas coisas que eu não entendia.

Embora conhecesse todas as letras tentava ajuntar elas mas não fazia sentido nenhum.

Acho que ali tudo era sagrado demais pra uma menina tão desmazelada, que nem cuidava do filho poder entender.

Sentei, como mamãe mandou, e esperei enquanto ela falava com o padre.

Quando ela voltou tava com os olhos cheios d'água.

Pensei que ela tava comovida por causa do lugar como eu, então ela falou apenas algumas palavras: - Não, sem dinheiro mjidenteL.." Saímos daquela igreja e dessa vez não passamos pela feira inteira.

Só andamos no comecinho dela - ou fim, não sei - e fomos por um outro caminho.

Mamãe não falava nada nem olhava nada.

Apenas caminhava segurando a minha mão.

Em algum tempo de caminhada chegamos naquela estrada longa e infinita de novo.

Continua

Amauri Silva
Enviado por Joel Costadelli em 22/06/2013
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