O ‘cisca’

Toda manhã era assim. Passavam as horas e o malandro voltava ao mesmo bar. O ‘Cisca’, como diziam as vizinhas, vivia de “caçar a mulherada”. As vizinhas não entendiam ao certo como ele conseguia. Mas, adoravam e pior, até torciam por ele. Paulo Rogério não era de todo mau. A não ser pelo risinho cínico e aquela mania de, como diz o dito popular, “se achar”. De resto até que era alguma coisa, o pobre.

-Deitei com a boazuda do 704.

- E que tal? – dona Mimosa estava toda espantada.

- Deu pro gasto.

Cada semana era assim. Um amor novo, um coração despedaçado. E os detalhes, picantes, que corriam de boca em boca no vilarejo. Até a chegada da megera do 703. A mulher era tão bela, quanto fria. Tão elegante, quanto perversa. Tão esperta quanto áspera. Assim que mudou para o local ouviu qualquer coisa a respeito do Dom Juan do 701. E pôs as garras de fora. Toda vez que o via, fingia não ver. Pisava fino, olhava-o por sobre os ombros. E escondia os dentes. Pior, com a vizinhança toda era assim.

Passadas duas semanas, nas rodas de conversa, dia sim, outro também, a pergunta era uma só: quando é que Paulo Rogério iria ‘pegar’ a megera do 703.

- Aquele nariz empinado precisa de uma lição - dizia seu Osmar.

- Bestalhona – concordava Emengarda.

E as perguntas foram ficando cada vez mais insistentes. Até virarem pressão. O Alceu dizia que o vizinho “amarelou”. Ana Maria que, definitivamente, perdeu o jeito. Tanta insistência só podia dar nisso. Paulo Rogério decidiu conquistar a megera. E, foi aí que tudo mudou.

- Dia quente hoje não é mesmo Antônia?

Com o uniforme azul-escuro, gola fechada e punhos cerrados, ela, com certeza, não gostou.

- Não senti calor senhor...

- Paulo Rogério, seu escravo – disse, com aquele risinho cínico.

- Sou abolicionista.

- Seu fiel escudeiro.

- Sou republicana.

- Seu secretário de Obras... – morreu ali. Antônia ganhava a rua a passos largos. Sem tempo para ouvir. Em segundos desaparecia e, só voltaria à cena, quando a noite começasse a cair.

Eram 20 horas. Os pássaros, aos poucos, terminavam o revoar. Verão, o bucólico tomava lugar na paisagem. E as luzes enfeitavam a cidade como pequenas estrelas. A Vila Esperança tornou-se abandono com o correr dos anos, e da miséria. Aos poucos, Antônia cruzava a cidade, em direção ao lar. Retornava para casa a passos lentos. O cansaço tomando conta do corpo, e da mente. A correria de mais um dia de trabalho sugava toda sua capacidade de pensar. Ao cruzar o portão de acesso ao prédio 204, ouviu vozes, risos até. Olhou para o pé de uma árvore, onde uma “roda” costumava reunir os poucos moradores da Vila Esperança. E pareceu-lhe que todos eles estariam ali. Até o chato do 701.

- Boa noite.

A voz de dona Emengarda cortou a conversa. Agora, o grupo parecia tentar adivinhar o que a novata iria dizer.

- Muito boa.

E foi só. Para desespero de Paulo Rogério que, poucos minutos antes, tentava convencer Ana Maria a ter com ele um particular depois das dez.

- Faço um trato contigo. Leve a enjoada para a cama e conte-nos como foi. Depois poderemos conversar.

Agora a questão virou ponto de honra. Teria de conquistar a novata, ou jamais seria o mesmo. Jamais.

Na manhã seguinte, Antônia se preparava para ir ao trabalho, quando a campainha tocou.

- Flores!

A exclamação, acompanhada de um largo sorriso, derreteu o gelo entre a dona da casa e o entregador. Naquela manhã Antônia quase não viveu, a pensar no presente recebido. E, no bilhete.

“Tenho tantos planos para nós dois”.

- Sonhando Antônia? – A pergunta veio de seu Zé. Chefe parece que percebe qualquer movimento estranho.

- Sim, só um sonho.

Seu Zé achava Antônia esquisita. Há três anos no trabalho, nunca falou de um namorado sequer. Nem o levou para as festas de final de ano, onde as famílias costumavam reunir-se.

-Ora, ora, tenho mais o que fazer do que ficar pensando no motivo do sorriso da Antônia – o murmúrio soou quase como um desabafo, de quem tentou, mas, nada conseguiu.

E os dias foram passando. E as flores chegando, cada vez com bilhetes mais apaixonados. Como perdeu o emprego, Paulo Rogério arrumou serviço para Ana Maria: seria a entregadora das flores e bilhetes, assim acompanharia de perto a reação da vizinha. E, também, seria mais fácil provar a ela que venceu a aposta quando a novata “caísse na rede”. Em um mês o semblante da megera mudou. Vivia sorrindo, fazendo brincadeiras com os vizinhos. Há quem até passou a gostar dela. Principalmente Ana Maria, que agora não saía do 703.

Era véspera de Natal e Antônia chegou tarde. Molhada pela chuva que caía. Paulo Rogério esperou uma meia hora. Queria dar tempo à vizinha para tomar banho e se recompor. Depois atacaria. A megera estava domada. Até sorria para ele. Depois, na véspera de Natal as pessoas estão mais abertas ao diálogo.

Batiam 23 horas quando deixou o apartamento. Deu dois toques na porta e ela abriu. De certo a vizinha esqueceu de trancar. Quando começou a invadir a casa pensou ter ouvido gemidos. E sussurros. Mas não parou. Será que dona Emengarda tinha razão, e a megera vivia um amor às escondidas?

Agora a curiosidade aguçava mais que o desejo de domar a fera e depois “largar”, conforme o combinado com Ana Maria. Na cabeça só uma pergunta teimava em aflorar: quem seria o ordinário que ousava tocar na vizinha? E terminava com um projeto longo que, por certo, iria adiar. Teria de perder a aposta para os vizinhos. Não, nem pensar. Fosse quem fosse iria competir com o “cara”, afinal era sua especialidade. Só em pensar nos dois meses de flores, bilhetes de amor, perfumes, presentes, bombons! E o vinho que mandara?...

Tomou coragem e empurrou a porta do quarto. Parou, estupefato: a visão bloqueou seu pensamento. A véspera de Natal transformou-se num pesadelo do qual não conseguia acordar.

Na cama, Ana Maria e Antônia trocavam carícias e juravam amor. E parecia que a relação era muito mais séria do que se poderia imaginar.

(Edna Lautert – jornalista e vice-presidente

da Academia Santo-angelense de Letras)

Edna Lautert
Enviado por Edna Lautert em 02/04/2007
Código do texto: T435272
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