ANFILÓFIO

Eram oito e meia da noite de um mês de março. Chovia a cântaros e Anfilófio acabara de saltar do ônibus, no ponto que ficava cerca de uns trezentos e poucos metros do seu prédio, em uma rua de subúrbio.

Acabara de sair do trabalho e nem percebera que havia esquecido no, banco do coletivo, o embrulhinho costumeiro que envolvia a sua marmita de operário.

Quando se deu pelo acontecido resmungou entre os dentes: Que se dane! Não vou precisar, mesmo, dessa porcaria de marmita! Trabalhei feito burro naquela fábrica e, agora, fui mandado embora sem mais nem menos!

A água fria da chuva lhe descia por dentro da camisa aumentando, ainda mais, aquela sensação desconfortante de perda e de real impotência, diante de um futuro incerto, já presente.

Motoristas passavam com seus carros, em velocidade acelerada, esparramando a água empoçada sobre os passantes, mistura de óleo com resíduos da borracha arrancada dos pneus, pelo atrito com o asfalto. A cada espirro, uma saraivada de imprecações..

Anfilófio era torneiro mecânico e trabalhava em uma indústria da área metalúrgica produzindo peças para veículos agrícolas. A firma que não andava muito bem das pernas, resolveu contratar uma equipe de administradores especializados em reengenharia operacional. Esses, depois de estudos e projetos, concluíram que a empresa deveria adquirir máquinas para substituir funcionários.

A medida a ser implementada iria trazer benefícios para a empresa, uma vez que as máquinas seriam capazes de racionalizar o emprego dos recursos viabilizando economia de material, horas de trabalho, mão de obra e energia.

Segundo os especialistas, a informática aplicada à mecânica iria introduzir, na linha de produção, máquinas operatrizes comandadas através de programas de computador que, em síntese, desenvolveriam as tarefas que ocupavam mais de uma dezena de operários cada.

Além disso, elas trabalhariam continuamente e não reivindicariam pagamento de horas extraordinárias, não iriam gerar faltas ao trabalho por doenças ou casos semelhantes, não implicariam em despesas previdenciárias ou trabalhistas, não desperdiçariam matéria prima, não teriam férias, licenças, não desperdiçariam energia, não reivindicariam vales transporte ou alimentação, bem como dispensariam todos os gravames que assolam os mecanismos de produção. Logo, a empresa teria mais um reforço no lucro geral.

Não bastasse a tragédia que se abatera sobre Anfilófio, quase como autômato, entrou na padaria da esquina para comprar o pão para o café do dia seguinte e uns biscoitinhos de polvilho que a mulher aguardava, todos os dias, com ansiedade. Ali, bem na parede em frente ao balcão, um aparelho de TV, em alto e bom som, apresentava um programa em que Ellis Regina se esgoelava nas “Águas de Março”, de Tom Jobim... “É pau, é pedra é o fim do caminho”...

Entrando no apartamento, Anfilófio afundou-se no sofá da sala, com o olhar perdido na televisão, onde o Joelmir Betting discorria sobre a economia do país e os índices elevados de empregos com carteira assinada, fruto das eficientes medidas do governo.

Tão logo o especialista acabou a falação, foi xingado de todos os palavrões do dicionário do rapaz... Mal terminara suas imprecações, terminara, também o noticiário da “Bandeirantes” e num jargão da emissora, bem sarcástico, como querendo tripudiar sobre Anfilófio, solenemente, e com música de fundo, a mulher sorridente dizia: “Em vinte minutos, tudo pode mudar!”...

Enrolada em uma toalha azul felpuda, Lurdinha acabara de sair do banho. Na cabeça, uma outra toalha como fosse um turbante, indicava que havia lavado, também, os cabelos longos e negros que eram ícones da paixão do marido. Linda na extrema e molhada nudez, se fosse em outra situação, o pobre coitado lhe pediria para deixar cair a toalha... Anfilófio havia se apaixonado por aqueles cabelos e condicionara o casamento a que eles fossem mantidos “ad aeternum”.

O que Lurdinha não sabia, era que o marido tinha uma fantasia com cabelos negros, em razão da tara que lhe despertara, desde a infância, a mãe de um coleguinha da vizinhança.

Nada conseguira, com ela. Em razão disso, medrou uma fantasia de tal monta que não conseguia ereção se não fosse com mulher de cabelos negros, longos... Daí, para o casamento com Lurdinha, foi um pulo. Ninguém nas redondezas e nem mesmo nas famílias dos dois entendeu bem a razão daquele casamento rápido. Em três meses, namoraram, noivaram e casaram.

O que Anfilófio não sabia era que os cabelos da mãe de seu amiguinho eram longos porque se tratava de uma fiel religiosa, dessas que não cortam os cabelos, não raspam as pernas e nem o sovaco... Por razões lá delas, mesmo, se distanciam das lâminas de barbear como se isso valesse um passaporte para o céu.

-- Oi, querido! Que chuvarada! Não? Nossa! Você está todo ensopado! Vá tirar essa roupa e tomar seu banho, antes que venha aquele ataque de bronquite asmática! Faz tempo que você não tem! Né?

-- Que se dane a asma! Agora, pode vir qualquer coisa! Tuberculose, lepra, AIDS, câncer de próstata! Qualquer praga dessas, agora, para mim é fichinha!

-- Mas! O que é isso! De que você está falando, afinal? Ficou maluco?

-- Estamos fodidos, minha filha! Fodidos! Você sabe o que é estar fodida?

-- Bem! Desembuche logo e não me venha com metáforas de botequim! O que foi que aconteceu? Nunca vi você desse jeito!

-- É que fui despedido! Só isso! Amanhã já não preciso acordar cedo, enfrentar a fila do ônibus, andar naquela porcaria como sardinha em lata e comer comida fria da marmita! Perdi meu emprego e, não tenho mais salário! Sou um desempregado! Estou fodido mesmo! Pra valer!

-- Meu Deus! E agora? Como vamos fazer para pagar as nossas contas? E a escola dos meninos? E a prestação da máquina de lavar? Como vamos fazer com o aluguel? Você não tem que pegar o Fundo de Garantia? Salário Desemprego? Não tem umas merdas dessas para quando o sujeito é mandado embora?

-- Tem, sim! Minha filha! Mas isso vai levar uns dias para receber e não dura para sempre! Né? Isso acaba, Lurdinha! Aaa-caaa-ba! Entendeu?

-- Sim! Mas, então não estamos assim tão desprotegidos! Enquanto isso, você procura outro emprego e eu também vou sair por aí atrás de alguma coisa!

-- Porcaria nenhuma! Você não vai sair procurando emprego porcaria nenhuma! Entendeu? Mulher minha não vai ficar o dia todo no trabalho, rodeada de homens, todos esperando uma oportunidade para dar “uma beliscadinha”! Principalmente, os chefes, diretores, gerentes, todos esses filhos da puta!

-- É só a mulher se dar ao respeito e ninguém se atreve a falar nada. Deixa de ser bobo! Isso é ciúme e a hora não é própria para essas coisas. Agora temos que cuidar da nossa vida e para isso, temos que arranjar trabalho! Vou falar com a Clarisse! Pode ser que consiga alguma coisa na loja de tecidos ou, quem sabe, ela possa dar alguma indicação! Vamos ver!

Clarisse era uma mulher vencedora. Com o seu tino para os negócios, havia se firmado como comerciante de tecidos e montado uma loja sortida onde fornecia tecidos para roupas, cortinas e estofados. Tinha uma bela freguesia e ia muito bem com os bancos, credores e fornecedores.

Clarisse, solteirona inveterada, dizia em alto e bom som, que sua vida era inteiramente dedicada ao seu trabalho e que não estaria disposta a colocá-lo em perigo por questões de ordem doméstica. Não seria um casamento que iria tomar seu tempo ou afastá-la das atividades comerciais e do comando de sua loja. Estava muito bem e não queria alterações com marido ou crianças a lhe reclamar o tempo.

Dois dias depois, Lurdinha aparece na loja.

-- Olá, Clarisse!

-- Olá, querida! Que saudade!

-- Venho te dar uma notícia!

-- Boa ou má?

-- Não sei! Você é quem sabe!

-- Então diga! O que é?

-- É que Filófo foi despedido! Foi mandado embora! Coisa de empresa que quer mais lucro e manda os empregados para a rua...

-- E então? O que vão fazer?

-- Você não disse que eu poderia vir trabalhar aqui?

-- Sim! Disse e mantenho o convite!

-- Então, já posso começar hoje mesmo!

-- Que bom, querida! Vamos lá dentro comemorar!

Saíram do ambiente, fecharam a porta do escritório e, sentido-se diante de um futuro que o acaso plasmou, abraçaram-se olhando profundamente, olhos nos olhos, e se beijaram com avidez.

-- Com a respiração entrecortada de paixão, Clarisse acaricia os cabelos negros e longos de Lurdinha, sussurrando aos seus ouvidos:

-- Meu amor! Sempre te desejei! Sou apaixonada pelos seus cabelos e sempre imaginei mergulhar neles!

-- Eu sei, querida! Aliás, sempre soube disso! Há muito percebi seus olhares sobre eles. Foi por isso que até hoje não os cortei. São para os seus carinhos...

-- E o silêncio tornou a cair sobre elas enquanto se entregavam aos beijos apaixonados só interrompidos pela juras de amor eterno...

-- Anfilófio, no jornaleiro da esquina, acabara de comprar o “Jornal do Brasil” para ver o que encontrava nos classificados...

Amelius
Enviado por Amelius em 10/06/2013
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