Jovens... ora, raios!
 
                No dia em que Nenzinho chegou à Vendinha, anunciando a morte de Seu Rosa, aquele que levou uma surra de chicote de Seu Damasceno, porque estava se engraçando com a mulher do tal, depois de esgotado o assunto sobre a morte do malfadado conquistador, a conversa descambou para uma verdadeira sessão nostálgica.
            Seu Tinoco, de copo na mão, circulava no reduzido espaço interno entre o balcãozinho e a varanda, aspirando ruidosamente o "perfume" que exalava da cachaça, relembrando histórias antigas de seu vasto repertório, muitas das quais eu já contei aqui. Também já contei, mas, nunca é demais repetir, que Seu Tinoco, homem letrado, é um ex mascate que adora chamar para si a atenção dos outros frequentadores emendando um causo após o outro, com a clara intenção de dominar a conversa. Naquele dia o assunto variava de "capitão de fragata a capiau de gravata", mas sempre recaia no preferido da tarde: a Ferrovia e os ferroviários.
            História vai, história vem... Alguém se lembrou de Seu Manuel, que também morrera havia pouco tempo. Seu Tinoco pulou na frente e puxou o causo:
            — Seu Manuel era um gajo novo, quando se aportou por essas bandas. Lembro-me dele, ainda do tempo que eu carregava uma mala... Lusitano, recém-chegado da Pátria Mãe, com um sotaque que tornava difícil sua comunicação com os nativos. Problema que foi contornado graças ao sorriso simpático que o gajo sempre trazia estampado no rosto, ornamentado de um característico bigodão a lhe denunciar a origem. Sua intenção era fazer a vida, ganhar dinheiro e comprar terras na região. Se tornar fazendeiro. Sonho pelo qual ele deixou a família em Portugal e veio para o Brasil. Entretanto, o tempo passou e Seu Manuel nunca ganhou o suficiente para comprar sua tão esperada fazenda. O emprego na Ferrovia lhe proporcionava uma vida tranquila, sem os apertos tão comuns entre os moradores da pequena vila, que não gozavam do privilégio e da segurança que a linha férrea oferecia. O trabalho além de simples, só era executado no breve momento em que um trem parava na estação. Isso permitia que Seu Manuel dedicasse muito tempo ao ócio, o que acabou acomodando o português fazendo-o postergar eternamente o sonho de se tornar fazendeiro. A profissão do lusitano era bem estranha: Martelador de rodas! O trem mal parava e ele corria toda a composição, de um lado ao outro, de marreta em punho batendo uma única martelada em cada roda. Quando terminava sua tarefa, suarento fazia sinal para o maquinista e esse, se já houvesse recebido a bandeirada verde do agente da estação, dava dois puxões na corda do apito e, expelindo tufos de fumaça, a locomotiva arrancava lentamente para prosseguir na viagem.  Assim transcorreu a vida de Seu Manuel. Casou-se, constituiu família, criou os filhos, sempre ali. Ora de conversa com o agente, ora na mesa de truco... Vidinha pachorrenta que ele levou sem desagrado. É certo que sentia saudades da pátria, mas retornar lhe parecia um sonho ainda mais distante do que a possibilidade de se tornar fazendeiro. Tudo começou quando Seu Manuel estava para se aposentar e a Ferrovia enviou um moço da capital para substituí-lo. O novato não sabia nada da função que ia desempenhar e o lusitano, temendo a mudança que a aposentadoria poderia fazer em sua vida, lutou para se manter no cargo. Foram muitas as argumentações que ele fez com o chefe local, pedindo para permanecer. Seu Zé Dias, o Chefe, chegou a telegrafar para a Diretoria Regional, na Capital do Estado, mas recebeu ordens para seguir as instruções. Então, aos insistentes pedidos do português, ele apenas respondia:
            — Ordens são ordens, Seu Manuel! Não posso fazer nada.
            O gajo velho, sentindo-se desprestigiado, tomou de má vontade as instruções que deveria repassar ao sucessor e o moço questionava:
            — Martelador de rodas, Seu Manuel! Isso é profissão que se preze? Coisa mais esquisita. Nunca ouvi falar.
            — Ora, pois meu rapaz! É profissão como qualquer outra!
            — O que eu quero saber é se tem futuro, se posso fazer carreira?
            — Fazer carreira? Ah! Sim, correndo em torno do trem, ah, ah, ah — debochava.
            — Não brinque Seu Manuel!
            — Pois então não me torre os colhões, ora essa!
            — É que acho estranha essa profissão! Martelador de rodas...
            — Tem muita profissão estranha nesse mundo, o gajo! Você vem da capital, por acaso sabes, por lá, o que é um carapina?¹ Um oleiro?² Um candieiro?³
            — Não, não sei! Mas, pelo menos me diga por que tenho de bater na roda com o martelo?
            — Perguntas, perguntas é o que sabes fazer! Batas o martelo nas rodas e quando terminares dê o sinal ao maquinista, para que ele siga viagem.
            — Mas por que tenho de bater o martelo? — Insistia.
            — Vocês jovens... Olha moço, trabalhei a vida inteira nessa profissão, estou para me aposentar e nunca perguntei a ninguém porque devia bater o martelo. Já você, acabou de chegar, mal começou e já quer saber? Ora, raios!
            Após a reprodução do diálogo, Seu Tinoco encerrou o causo. Confesso que fiquei curioso. Afinal, por que se deve bater nas rodas do trem com um martelo? Ia perguntar, mas ele já havia começado outra história. Depois me esqueci completamente do assunto até que, certo dia, de uma reluzente baratinha Ford 29 vermelha, estacionada no pátio da Vendinha da Grota, desceu um velho conhecido. Era o Engenheiro Benjamim*, um especialista em ferrovias com vasta folha de serviços prestados à Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, morador de Bom Jesus do Mandu, lá para as bandas do Sul do Estado que, de passagem pela região, resolveu aparecer para um dedo de prosa e um gole de cachaça. Depois de abraçar o amigo, conversa vai conversa vem, me lembrei da história das marteladas e achei que era uma boa oportunidade para satisfazer minha curiosidade. Quando fiz a pergunta, o amigo sorriu e respondeu:
            — Esse é um método que não se usa mais, Seu Zé! Mas se o senhor quer saber, as batidas era uma forma de examinar a integridade das rodas: Se o som fosse um tinido cristalino, a roda estava boa. Mas se soasse chocho, a roda estava trincada, portanto, precisava ser substituída!
            Benjamim se foi e eu fiquei matutando: Será que Seu Manuel deu aquela resposta ao jovem sucessor por puro capricho ou ele realmente desconhecia a profissão que executou durante todos aqueles anos?

 
*   *   *

1.  Carapina: O mesmo que carpinteiro;
2.  Oleiro: Fabricante artesanal de tijolos;
3.  Candieiro: Guia de boiada de carro de bois;
* Personagem criado por meu compadre Tchem: O professor e escritor Claudemir Nery, natural de Pouso Alegre, MG, atualmente residindo em Uberaba.