2527
Ano de 2527. Ele andava desgostoso da vida. Desgostoso demais, de si e do mundo. Nada lhe permitia saber sequer se vivia no presente ou no futuro, era de causar confusão no cérebro e dúvida na personalidade.
Tecnologia? Nada ali era novidade. Era tudo tão novo que já era criado ultrapassado. Não havia tempo para pensar na vida, nas pessoas, nas coisas, nos deveres, nas vontades. Aliás, se não havia tempo para o homem quem dirá para os deuses, que agora eram creditados a qualquer estímulo eletrônico que garantisse umas horas de lazer e interação social. Oh glória!
A sociedade estava louca e informatizada até o último fio de cabelo cobreado.
Coberto de tanta máquina, envolto em tantas fiações, sufocado de tanta novidade velha, vagueou por aqueles seres metade humanos e metade código de barras. Foi dar num lugar desconhecido.
O lugar também não tinha cara, mas ao menos não tinha números que sufocasse à mente numa primeira vista. Resolveu entrar, afinal se não tinha números até podia ser coisa boa. Estava cansado de números: ser número, ter número, ver número, número, número!
O lugar era qualquer coisa de estranho que não lhe permitia identificar o tempo: entre passado, presente e futuro. Meio estático. Isso agradava. Como se apenas existisse, independente de datas.
Dentro não era tão cinza como toda a tecnologia, nem tão escuro ou carregado como toda a fiação elétrica das coisas. Havia pequenos frascos pendurados e enumerados para todo lado, pareciam cápsulas esticadas, elegantes e finas. Muito conhecedoras das coisas, dava essa impressão.
Cada uma dessas coisas sabedoras continha um líquido, uma espécie de fluido concentrado. Não tinha nome, como saber o que eram? Mas já estava cansado de todo o resto, toda a novidade que no fundo era só mesmice. Por que não experimentar?
De uma vez, engoliu o fluido.
Imediatamente vieram imagens à sua cabeça e sentimentos diversos iam-se espalhando por todo o seu corpo. Imagens que contavam uma história, parecia até ouvir uma voz. Via os personagens, refletia as reflexões, indagava as indagações, se reconhecia, odiava, amava, sorria, chorava. Cada imagem trazia um bilhão de emoções e num espaço de tempo que não podia ser contado; se breve, se longo, a história teve seu começo, meio e fim. Como tudo deve ser. Sentiu-se entorpecido de tanta informação e a cabeça se abria à novas ideias.
Que lugar tão diferente das coisas! Que seria aquilo que lhe contava histórias, dava sentimentos e entorpecia em forma de êxtase? Experimentou um segundo, pois um só não saciava a curiosidade.
Esse outro deixava espantado, alucinado, curioso. Instigado! Uma história de investigação, de coisas ocultas, de mistérios, de segredos. Imagens obscuras e borboletas não-muito-mecânicas davam voltas não só no estômago, mas no resto do corpo também. Vibrou, gritou, sussurrou com aqueles que apareciam na imagem, suspirou, assustou! Que susto, que isso!!! O frasco acabou num suspense insolucionado. Era bem diferente do outro.
Outro frasco, amava, sentia, via, brigava, chorava! Outro frasco: procurava, viajava, conhecia, questionava! Outro frasco: revolucionava, protestava, militava, informava! Outro frasco: enredava, desvendava, desmentia, impulsionava. Outro frasco, outro frasco, outro frasco, outro frasco. Outras sensações, outras imagens, outras vidas, outras histórias.
Viciou no líquido, no fluido, na informação. Nunca mais pisou fora daquele espaço. Morreu sem provar todos os frascos, mas sorveu tudo que pôde. Ficaria para outro sortudo, talvez.
Os fluidos que apagaram os números de sua vida, inclusive 2527.