Saudade?
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Hoje faz cinco meses que meu pai faleceu. Ele nos deixou a todos: esposa, filhos, netos, bisneta, amigos, alunos... Deixar – talvez não seja essa a palavra adequada para definir ausência, mas meu pai, ao partir, deixou um imenso vazio.
Foram décadas de convivência e de ensinamos que forjaram minha personalidade. Com ele, o primeiro episódio de frustração – experiência que me modificou completamente e me fez buscar os porquês das coisas. Foi com ele que aprendi a ser franco, falando o que penso e não o que as pessoas gostariam de ouvir – essa característica, é verdade, fecha muitas portas, mas quem liga para portas num mundo cheio de janelas! Ele foi o meu mestre. E será sempre.
Depois da separação – a morte tem essa magia –, ainda não tinha conseguido escrever sobre o meu pai. Externar as qualidades dele parecia óbvio demais! Recordava nossos momentos juntos e me sentia feliz. Dava gargalhadas... Quando tentava escrever sobre ele, entretanto, um clarão se abria diante da tela e tão-somente a escuridão me preenchia as lacunas invisíveis da imaginação – a pena me proporcionava cócegas poéticas, mas não conseguia sair da inanição, nenhuma palavra emergia do meu íntimo.
Minha infância, as lembranças dela, escapava-me pelos dedos. Não me lembrava do sorriso do Pintinho, meu pai. Sorria ao recordar; o meu sorriso, solitário. Sequer conseguia experimentar a doçura da saudade. Um torpor me apertava o peito quando, depois das recordações, tudo ia se tornando distante de mim. As lágrimas brotavam, vorazmente, lavando meu rosto. Minha alma era escuridão, trevas de ressentimento.
Há cinco meses, numa manhã de quarta-feira, recebia a notícia da partida:
“Ele foi submetido à hemodiálise e não suportou”... – Com essas palavras meu irmão deu a notícia. Escutei-as em seco. Chorei. Desliguei o telefone.
Liguei para minha mãe. Ao ouvir meu “Oi, mãe!”, cessou-se o verbo e nos valemos do silêncio para externar a dor que nos invadia. Lágrimas não falam ao telefone! O pulsar de corações apertados, corroídos pela dor da separação, é inaudível. Evoluímos, mas, felizmente, ainda sentimos as mesmas manifestações animalescas dos antepassados, apesar de as estações nunca cessarem dentro da nossa visão Newtoniana de espaço-tempo.
Segundos depois, do outro lado da linda, viria o desabafo:
– “Ele falou que só morreria com cem anos!”.
Ah vida! Por que nos foge das mãos o poder de escolher nosso fim?
Ouvia as palavras e os lamentos da minha mãe e uma série de perguntas me incomodava: “Como viver sem o meu pai?”. “Como ficaremos sem ele?”. Minha pequenez e imperfeição impediram-me de perguntar “como ele ficaria sem nós!”. Somos imperfeitos, mesquinhos... E soberbos também!
Morava longe fazia quatro anos e tive que me preparar para o retorno à casa paterna noutro pendular deslocamento interior-capital-interior. No caminho, a cada cidade deixada para trás, a angústia aumentava. Nunca tinha sido tão difícil voltar para casa...
Nos últimos anos, encontrava meu velho deitadinho ou sentado, ou comendo, ou andando com dificuldade pela casa, mas o encontrava, apesar de fraco e debilitado, eu o encontrava vivo. Agora eu o encontraria morto.
“Puseram-lhe o travesseiro embaixo da cabeça, como ele pedira em vida?” “Estaria acolchoado como desejava?” – essas perguntas dialogavam comigo no percurso da viagem. Meu pai recusava caixão luxuoso veementemente, mas não abria mão do conforto para a cabeça: “Deve doer demais ficar deitado o tempo todo na mesma posição!” – dizia ele, ao falar sobre a própria morte.
Os velórios. Pessoas metralhando palavras aprontadas; cansativas e intermináveis ladainhas – essas práticas nunca me apeteceram o espírito. Sermões. Os padres, durante as missas de corpo presente (espírito ausente?) não me enchiam os olhos de encantamento. Entretanto, uma pregação em especial me burilou as ideias. Um padre, amigo da família, ao encomendar a alma dum defunto, fez a seguinte representação alegórica entre o nascimento e a partida. Disse ele:
– Quando nascemos todos sorriem, mas chegamos ao mundo chorando. Na partida, enquanto todos choram, partimos felizes, sorrindo.
Se o padre estiver certo, por que sofrer? Se para aquele que nos deixou, na finitude da vida e certeza da morte, sobreveio a felicidade eterna, inalcançável em nossas passagens e revisitações a este mundo de provas e expiações, sorrir seria razoável...
Restavam duas horas de viagem. Lembrei-me do penúltimo diálogo com meu pai:
– Papai, o senhor está cansado, não está? Hein, meu velho?
– Estou, meu filho!
– Quer desistir, papai? Desistir da vida?
– Não! Queria era ficar bom... Está demorando muito. Estou cansado. Só queria ficar bom.
Escutar do meu velho aquele apelo me surpreendeu. Tentei disfarçar as lágrimas, mas o pigarro me denunciou. Minha esposa me observava e deve ter percebido as lágrimas através do reflexo das luzes dos postes que nos perseguiam, iluminados ou não, desde o início da viagem. Permanecemos calados.
Foram três anos de enfermidade. Meu pai não reclamava. Certa manhã, entretanto, depois de ter sido banhado por um sobrinho, ele caiu. Machucou os joelhos. Meu primo o ergueu. Ele caiu novamente. Ao limpar o sangue que escorria pelo debilitado corpo, meu pai rogou a Deus: “Senhor, tende piedade de mim!”. O restante da caminhada foi de resignação, até o derradeiro dia.
Por que não sentir saudade? Por que me esqueci de parte da minha infância e de muitos dos momentos ao lado do meu pai? Por que esses sentimentos (culpa, ingratidão) me invadem sempre que busco, nas minhas reminiscências, aproximação com ele?
– Filho!
– Quem é?
– Sou eu, o seu pai...
(Pausa para chorar – as lágrimas e os soluços forçaram-me parar. Perdão!).
– Não me busque tanto na ausência. Estou presente e estarei sempre.
– Pai, faz tão pouco tempo, mas parece eternidade dentro de mim...
– Na realidade, meu filho, você precisa aceitar que ele partiu. Ele já aceitou, sabia?
– Pai?!
– Sim, filho... Agora sou Eu, O Pai.
O tempo pareceu colapsar. Dentro de mim, as angústias se tornaram esperança e hoje, tenho certeza: fez cinco meses que meu pai renasceu.
Fortaleza-CE, 05 de janeiro de 2009.
10h53min
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