Alfredo?!
Seu Tinoco, um mascate aposentado frequentador aqui da Vendinha e Nenzinho, caipira nativo da região, tomaram o trem em Itiquapira, com destino a Uberaba. A composição, vinda da Capital do Estado, estava atrasada como de costume. Também, estava lotada. Por essa razão os dois se dirigiram ao vagão restaurante, procurando um lugar onde se abancar. Estavam com sorte, pois ao final do corredor havia uma mesa com duas cadeiras disponíveis. O trem, balançando muito, dificultava os passos de Nenzinho, que havia enxugado algumas doses de cachaça na Venda de Seu Godinho, enquanto aguardava a hora de embarcar. Seu Tinoco apoiava o amigo, segurando-o pelo braço, para evitar que caísse. A mesa em questão estava ocupada por um cavalheiro bem trajado, que tomava uma bebida e se distraia observando a paisagem. A planura do Cerrado muitas vezes entedia o viajante, mas também tem seus encantos. As veredas com suas curvas suaves, pontilhadas de buritis, guardam riachos cristalinos e o verde diferenciado dos extensos vales é lenitivo que nunca passa despercebido mesmo aos viajantes mais desatentos.
Nenzinho viu o homem, calvo da testa à raiz da nuca, e, em tom de deboche, balbuciou para o companheiro:
— Duvida de que eu dê um tabefe na cabeça do careca, Seu Tinoco?
— Duvido! Não vou permitir um destempero desses, Seu Nenzinho. O senhor está bêbado, por favor, comporte-se!
— Bêbado... que bêbado, Seu Tinoco? Estou alegre, só isso. Me paga uma cachaça e o senhor vai ver que eu dou o tabefe, o homem desocupa a mesa e nem vai achar ruim.
A discussão se prolongou com muita insistência do "bebum". Claro que Seu Tinoco não tinha intenção de concordar com a maluquice do outro. Entretanto Nenzinho, cambaleando devido aos sacolejos do trem somados ao efeito do álcool que ingerira na Venda de Seu Godinho, tanto insistiu que, para desobstruir a passagem, pois estavam atrapalhando o trânsito das pessoas, mesmo contrariado, o mascate acabou concordando.
Passaram com dificuldade pela pequena fila que se formara no estreito corredor. O homem que, ainda absorto em seus pensamentos, não percebeu a aproximação dos dois, foi surpreendido pela bofetada que o "pingão" lhe desferiu. Contudo, antes de o viajante expressar qualquer reação, Nenzinho se jogou sobre ele em um efusivo abraço:
— Alfredo?! Meu amigo! Há quanto tempo, hein!
— Que é isso, meu senhor? Meu nome não é Alfredo e eu não lhe conheço!
— Como não, Alfredo? Bons tempos aqueles... como esta D. Judite, sua mãe?
— Desculpe cavalheiro. Não me chamo Alfredo, nem minha mãe se chama Judite.
— Meu Deus! Mas, é igualzinho! Desculpe-me, Senhor...
Irritado o homem não respondeu. Levantou-se e saiu do vagão restaurante, enquanto Seu Tinoco e Nenzinho ocupavam a mesa, onde permaneceram até próximo ao fim da viagem. Quando o Comissário de Bordo passou, anunciando, aos berros, a última parada, os dois se levantaram para buscar as bagagens que haviam deixado no vagão da segunda classe. Para melhor conforto dos passageiros, a composição dos trens obedecia a uma sequencia que ia da locomotiva ao carro restaurante, na seguinte ordem: vagão de carga, dois vagões de passageiros de segunda classe, dois vagões de passageiros de primeira classe e, por último, o vagão restaurante. Esta disposição proporcionava a quem pagasse mais pelo luxo dos carros de primeira classe, menor nível de ruído e menor incidência das inconvenientes cinzas e fagulhas, expelidas pela Maria Fumaça. O anuncio do fim da viagem, provocou uma debandada do vagão restaurante, o que congestionou os estreitos corredores. Seu Tinoco e Nenzinho seguiram a corrente de passageiros e ao passarem por um dos carros da primeira classe, deram com o cavalheiro careca.
— Me paga mais uma pinga e eu dou outro tabefe na careca dele. — propôs Nenzinho a Seu Tinoco.
— Não creio que tenha essa coragem!
— Paga a pinga e vai ver!
— Pago!
Nenzinho na frente, seguido de Seu Tinoco, espremidos no corredor, aproximaram-se do homem, que, também já se levantara e, se equilibrando, retirava a bagagem do maleiro quando recebeu a segunda bofetada. Com as duas mãos ocupadas, o pobre não teve como reagir. Nenzinho já lhe abraçando, bradava:
— Alfredo?! Cê não acredita cara! Acabei de dar um bofete na careca de um sujeito, no carro restaurante, pensando que fosse você! Como é que vai, meu amigo!... E Dona Judite, como está?...