152 – NOITES ENLUARADAS...

Pescando no rio Urucuia, norte do estado de Minas Gerais, arranchamos no barranco do rio, um lugar muito aprazível, sombreado, ao lado de uma palhoça de propriedade de um Senhor de idade já bem avançada, morava sozinho, se virava sozinho, fazia de um tudo, e ele logo tornou nosso amigo, se tornou um serviçal pronto para qualquer serviço que determinasse.

Passado alguns dias de pescaria, não estávamos tendo sorte, muito peixe, mas peixes pequenos, piaparinhas, matrinxãs, início de setembro, a água do rio estava muito limpa, e assim iam passando enrolados aqueles dias...

E este Senhor respondia pelo apelido de Coró, o nosso vizinho.

Do outro lado do rio, que era estreito neste trecho, tinha um casebre abandonado, cujo interior depois averiguei, estava coberto de teias de aranhas de antigas velhices.

Numa noite enluarada, meu pai que tinha por costume acender fogueiras, manteve a tradição, e no seu volteio ficávamos tagarelando, jogando conversa fora, e das vezes ouvindo causos, e o seu Coró nos contou:

- “Quando eu era menino, naquele barraco ali do outro lado do rio, hoje abandonado, morava um moreno queimado, que repentinamente chegou nesta região e apoderou daquele pedaço de chão e estava acompanhado de uma dona, uma mocinha de uns dezesseis ou dezessete anos, que parecia ser muda, pois não dava trela pra ninguém, cumprimentava ninguém, cabisbaixa, soturna, limitava a responder o que o Moreno perguntava!

Este homem tinha uma péssima sina, gostava de roubar, mas roubava nas distancias calculada pra que ninguém do perto desconfiasse, saia às escuras e voltava às escuras, homem matreiro, atiçado, sombrio, parecia que tinha cisma até da sua sombra, por isto só vagava nas noites escuras que nem um breu.

E a mocinha pegou barriga, barriguda ficou, dando preocupações, foi quando pela primeira vez na minha vida eu vi uma caravana de pescadores que vieram do bem longe e se arranjaram mais ou menos neste lugar onde vocês estão. Nesta turma de pescadores tinha um médico, que o moreno logo dele se irmanou na esperança que ele assistisse a sua mulher no nascer da criança, e ela estava pra parir já naqueles dias.

E assim foi a mulher nos cuidados de parto assistida pelo médico, e tudo transcorreu nos conformes, nascido o menino, o moreno se empolgou, bebeu além dos seus controles e na roda da fogueira destramelou a língua, contou pros pescadores e ribeirinhos a sua origem, os seus feitos e como que ele viera parar naqueles cafundós.

Disse ele que era lá das bandas da Bahia, duma região chamada Paramirim, e aquela moça ele roubara, na força, na marra, na violência da família dela, que é gente poderosa naquela região.

Assim que o moreno se livrou do efeito da bebedeira, se arrependeu amargamente de ter contado seus segredos, amaldiçoou a sua língua, anoiteceu, mas não amanheceu, ainda no escuro da noite apressadamente se enfurnou numas bibocas lá no bem distante, na defensiva, temeu que no secreto alguém denunciasse o seu paradeiro, abandonando sozinha a mulher com o seu filhinho.

Os pescadores já arrumando suas traias para partir, foi quando atravessando o rio numa tosca canoa, a dona apavorada implorou para que levasse ela também com eles, e que ela fora raptada, que aquele homem era um assassino cruel, um ladrão de mão cheia, e que a deixasse na cidade mais próxima, que ela daria um jeito de chegar até a sua terra.

Contrariados, mas por fim se apiedaram daquela alma sofrida, os pescadores levaram a mulher e a criancinha, na certa no bem longe dispuseram pra ela passagens e dinheiro pra que seguisse pro seu destino.

O moreno ao regressar achou a palhoça vazia, passou noites e noites no arrumar e percorrer caminhos na procura da sua dona, mas tudo em vão, sentia saudades dela, lamentos e mais lamentos, murmurou:

- Puta qui pariu, agora ficou do jeito que o diabo gosta, sangue vai correr!

E assim o tempo foi passando e ele que já bebia, passou a beber mais e mais, e quando bebia contava dos seus feitos engrandecidos, da mortandade por onde passava, de suas ladroagens, e na doidura dilatada se achava o maioral.

Trotaram alguns meses da partida da dona, num amanhecer, amanheceu a palhoça do moreno cercada por uma cabroeira, homens de fúrias e valentias, e num supetão, num sem aviso, arrombaram a porta e arrancaram ele da cama e levaram pra fora, um podão maneirou no ar e no seu azougue prateado o sol resplandeceu, testemunha muda do acontecido e uma cabeça foi decepada, troféu ensanguentado, num embornal guardado, levado por aqueles cavaleiros de armas providos, muitas, e num revolteado sorveteram por este mundão que Deus fez, pra nunca mais deles ouvirem falar, e aquele estrupício, o corpo da cabeça desprovido, na terra nua insepulto ficou, e vieram as varejeiras e os bichos da terra pra comer daquelas carnes apodrecidas.

Parece que a família da moça, no mandar rastrear, rastreadores despachou, rastreou, e descoberto o esconderijo do Moreno, encomendado foi a sua cabeça na vingança corretiva, assentada em honras feridas, tudo isto foi trombeteado nestes e naqueles cafundós, lição assim aprendida, de difícil esquecimento.

E aquela palhoça ali do outro lado do rio ficou por uns tempos abandonada, só por uns tempos, depois teve vários moradores e todos logo mudaram, mudavam amedrontados na pressa ligeira, pois a casa é mal assombrada, ouvem gemidos, chiados como quem se arrasta pela escuridão, mas a palhoça foi de vez abandonada quando numa noite enluarada, viram a alma penada, estava coberta de uns panos brancos esfarrapados, sem a cabeça, a vagar no tatear, na certa procurando por aquilo que lhe fora arrancada.

Eu mesmo numa outra noite enluarada, igual a esta, vi a alma penada, Virgem Maria, Jesus Cristo que nos proteja, era o condenado procurando no tempo sem fim por sua cabeça, coisa arrepiante de se ver, da tremedeira maleitosa, a gente sua frio, bambeia as pernas, correr não consegue...

E já é tarde e é sempre depois da meia noite que aquela alma penada faz o seu passeio em volta da palhoça, e eu não quero mais ver aquela coisa ruim, do outro mundo, penitente...

To indo pessoal, e até amanhã se Deus quiser...”.

E eu fiquei por um longo tempo no volteio da fogueira, sozinho, mas tive uma sensação esquisita, que estava sendo observando por uns olhos estranhos e não vistos ou sabidos, só sentidos, olhei mais atentamente para a palhoça no outro lado do rio, e tive a nítida impressão que alguém vagava por lá, aquilo me deu uns arrepios e até tremedeiras, mas logo vi que tudo não passava de devaneios da minha imaginação exaltada, será?

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 23/05/2013
Reeditado em 02/06/2013
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