O velório do Januário
O clima estava pesado no Velório de Santo Miguel. Pessoas murmurando, pessoas chorando, crianças correndo, bebes gritando e as beatas louvando por mais uma alma que o Senhor Jesus teve pena e arrebatou desta terra ingrata.
No centro do salão aglomerava-se a família e os amigos mais próximos do Senhor Januário. Sua viúva estava com o rosto transfigurado de tanto pesar, estava amparada por teus dois filhos, Afonso e Alfredo: esguios e engravatados, mantinham um olhar alheio ao que estava ocorrendo como se vislumbrassem algo futuro que viria em decorrência da morte do pai, possivelmente a herança.
Havia tantas velas queimando que era difícil distinguir a fumaça que saia dela ,da que saia dos cigarros das matronas presentes.
O Senhor Januário era um grande comerciante de Santa Isabel, tal espirito burguês era proveniente do sangue dos portugueses que corria em tuas veias, melhor dizendo, que não corria mais. Tinham imóveis por toda a cidade , todos bem localizados. Era seu costume promover jantares em sua casa e convidar a elite social de Santa Isabel, e esta mesma elite ali estava em teu velório.
Os senhores acompanhados de suas senhoras voluptuosas que exalavam perfumes caros e exibiam aros dourados nos dedos, ao passarem pelo caixão aberto e vislumbrarem o todo poderoso Januário, faziam caras e bocas, alguns apresentavam indignação, outros repulsa e alguns ate uma certa pena, mas não se enganem , não era por causa de Januário, era por causa do que ele representava.
Januário era a encarnação da opulência e da soberba, assim como cada um que estava presente naquele salão , olhar para ele imóvel e gélido naquele caixão fazia com que os presentes testemunhassem o que seriam brevemente: cadáveres. Muitos que estavam chorando ,não derramavam suas lagrimas pelo defunto, mas sim por perceberem a amarga realidade que toda a fortuna do mundo não poderia salva-los do triste destino de todos os outros mortais. Pois tanto o senhorio, quanto os inquilinos seriam devorados pelos vermes e a única testemunha seria o silencio do sepulcro.
O chororô só aumentava até que Januário, não mas aguentando toda aquela falsidade, com um impulso se levantou.
-Mas que palhaçada é essa aqui?
Choro, murmúrio, gritos e lamentos cessaram-se repentinamente.
Após alguns minutos, a viúva foi caminhando lentamente , tremendo mais que vara verde, em direção ao ex-falecido esposo.
-Meu querido, você voltou pra mim! Disse entre sorrisos e lagrimas
-Voltei é uma ova! Vocês além de serem mentirosos ainda são egoístas. Quando aqui estava vivo ,mas jazia em meu leito perecendo de uma peste que sabe se lá de onde veio, nenhum de vocês estava presente, e hoje, no dia de meu tão aguardado descanso, vem me azucrinar com suas lagrimas falsas e seus olhares de repudio? Vão todos para o inferno!
Olhos arregalados e bocas escancaradas eram vistas por todos os lados. Ate as crianças estavam impressionadas. Em meio esta sena tão trágica, que graças às habilidades deste belo narrador, ficou cômica, o Januário se pôs a caminhar por entre aquelas expressões estupefatas.
Ali ele avistava conhecidos e desconhecidos, devedores e agiotas, beatas e promiscuas, jovens e velhos. Todos se afastavam quando ele se aproximava.
-Senhor Francisco -disse ele se aproximando de um senhor adornado com um grande bigode e uma pança maior ainda, resultado de fartos jantares nas casas dos parentes, amigos e desconhecidos - O senhor , no meu velório?- e soltou uma gargalhada- espero que não esteja esperando um jantar após a cerimonia- e continuo a dar passadas longas e folgadas.
-Senhora Rosamund, já não basta ter enterrado seu marido semanas atrás , e veio presenciar o enterro do seu amante - Um grito de horror escapou da boca da viúva.
-Ora querida, não me diga que não sabia? Mas é claro que sabias. Todavia, para sermos justos eu só comecei a lhe trair, depois que a senhorita começou a se deitar com o nosso jardineiro Tavares, mas este , como não pertence a esta elite, acho que não foi convidado a sepultar-me - disse dando uma olhada esperançosa para procurar o jardineiro, mas como já predito, ele não estava ali.
Os dois rapazes esguios ao lado da mãe lançaram um olhar de desaprovação ao falecido-vivo pai.
-Mas não se preocupem meus queridos filhos, a herança permanece em seus nomes, pois vocês esperaram tanto tempo por este dia , que seria uma injustiça que ela não caísse em suas gananciosas mãos.
Januário sabia da vida de cada uma daquelas pessoas. Todos traídos e traidores, que durante toda vida se esforçaram ao máximo para construir uma vida falsa e fútil. Não importava-lhes se eram felizes ou não, contanto que os vizinhos, parentes e amigos assim acreditassem.
Ele poderia desmantelar totalmente aquelas mascaras burguesas, mas o que realmente queria era partir deste mundo como sempre esteve: só.
-Saiam! Gritou Januário- Ao menos me deem o prazer de morrer em paz!
E um a um, foram saindo, todos atordoados e chocados. Era o cumulo da petulância ser expulso do velório pelo próprio defunto.
O salão ficou em um longo e triste silencio, ate que Januário ouviu passos frágeis e firmes se aproximando, já estava se preparando para mais uma onda de gritos, mas quem adentrara o salão era uma senhora.
Pelas vestes era faxineira. Suas mãos, face e curvatura da coluna lhe denunciavam os muitos anos de vida.
-Oh, desculpe-me. Achei que já havia acabado o velório.- disse maneira franzina e envergonhada.
De súbito uma compulsão de lagrimas assolou o pobre Januário. Ouvia os próprios soluços saindo de sua garganta.
Sentiu a senhora aproximar-se vagarosamente dele e colocar uma das mãos débeis em seu ombro. Ao fazer isso sussurrou- posso fazer algo para lhe ajudar, senhor?
-Sim. Poderia velar-me para que eu possa partir?
-Claro que posso- disse ela olhando profundamente em seus olhos. Assim ele se deitou, e assenhora colocando sobre ele as flores que haviam caído e cobrindo-o novamente com a seda.
Januário sentiu-se imensamente grato àquela senhora, e um sentimento de paz invadiu sua alma.
A senhora lhe deu um beijo na face e perguntou-lhe serenamente- O senhor acha que já esta pronto para partir?
Januário ,sentindo a vida lhe deixar novamente ,assentiu levemente e espirou.
A senhora cerrou seus olhos, mas continuou ali pela madrugada velando-o, pois assim ela havia prometido.