O morro do mamão

São João Evangelista , 1986.

Iniciávamos o ano letivo na Escola Agrotécnica Federal de São João Evangelista . Cabeças rapadas, muitos sonhos e incertezas. De repente , uma forma de interagir com a comunidade urbana do local. A Professora Damáris entregou-nos a missão de traçar um perfil social e condições sanitárias das comunidades carentes da cidade. Deveríamos em dupla (gabiru não deve andar sozinho nunca) , com os formulários em branco , entrevistar os moradores do morro do mamão e outros topônimos da cidade. Era uma espécie de senso que tentava identificar o número de pessoas em cada casa, a existência de água canalizada, esgoto, luz, etc. Era até um pouco extenso e dava algum trabalho o preenchimento. Tudo meramente informativo e talvez poderia mais tarde servir de estudo a alguém que se interessasse na autarquia ou câmara de vereadores. Louvável iniciativa, na minha opinião, mas não sei se seguiu caminho.

Acontece que um tal gabiru oriundo lá das bandas do norte de Minas pôs-se de prancheta e caneta na mão e entrou pelas ruelas com seu parceiro . E estava em atraso com o trabalho, o prazo de entrega esgotaria-se em poucos dias. Tinham que trazer um número de pesquisas para a professora. Caso contrário, poderia haver penalidades e ninguém estava a fim de fazer feio logo no primeiro ano.

Chegaram ao morro do mamão. O gabiru do norte de Minas vê um casebre com cerca de arame farpado ao redor. Lá dentro um cachorro magro cochilando, duas galinhas do pescoço pelado ciscando e resolve bater na porta. Eis que de dentro uma mulher dos seus 40 anos, lenço na cabeça e uma cara de mal humorada atende.

- O que é?

- Era para uma entrevista da escola agrotécnica que nos pediram. A senhora pode dar?

- Pra quê? - ainda mais desconfiada.

- É da professora dona Damáris. É sobre a situação social dos moradores daqui.

- Não vou falar nada não. Ninguém tem nada com a minha vida. Vai embora. Meu marido não tá agora - e já foi fazendo menção de fechar a porta. O gabiru vendo que ia perder uma oportunidade de se livrar de um relatório por preencher, arrisca.

- Tá bem... se a senhora não quer ganhar os presentes do governo, paciência...

- Presente!? Que presente? - já reabrindo a porta que ia fechando.

- É que dependendo da situação de cada família, a escola, que é federal, do governo, vai dar de presente aquilo que a família precisar, depois que ler e analisar o estudo.

Nesta hora o companheiro arregalou os "zóio", com a novidade. Presente???? Governo????

- É ??!!! - interessou-se a mulher.

- Pois é... mas se a senhora não precisa, tudo bem. Ainda bem, né - e foi virando.

- Peraí, menino. O que eles vão dar?

- Tudo.

- Tudo o quê?

- Fogão, geladeira, televisão. Vai a papelada toda pra Brasília e depois vem a resposta do governo.

A mulher desce o degrau da porta e mais amável diz:

- Pode perguntar pra mim o negócio aí. Eu respondo.

- Ah, beleza. Nome completo da senhora ?

E fez o relatório todinho. Despediu-se e desapareceu para outra casa.

Passado uns tempos ou meses, a tal mulher apareceu lá em cima no prédio da escola e foi direto na secretaria procurar saber como estava o "processo" dela em Brasília, pois queria receber o fogão e geladeira prometidos. Até explicar que a coisa não era daquele jeito, a mulher rogou praga na escola e tudo que era gabiru safado metido a besta. Eita povo brasileiro que é engalobado, meu Deus!

Dalmir Lott
Enviado por Dalmir Lott em 20/05/2013
Código do texto: T4299763
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