ENTERRO
O moleque era mesmo da pá virada. Impertinente e teimoso. Coisa de tirar a paciência e o sossego de qualquer um. Estava com a mãe no velório de dona Ganzá, lugar pouco recomendável para se levar uma peste de um moleque igual a ele. Bulia nas margaridas junto ao pé da defunta no caixão, sob o olhar choroso de meia dúzia de carpideiras. A mãe sapecou-lhe um beliscão no braço. O peste esfregou o local e rapidamente mudou de posição. Foi ter perto de uma das velas na cabeceira do caixão. Olhava para os lados, e com o canto da boca, tentava soprar a vela. Foi a vez de um meio parente da falecida chamar sua atenção. O tranqueira do moleque não se fez de rogado, e só saiu dali, meio corrido, quando conseguiu apagar a vela.
A mãe já não sabia se continuava a chorar pela velha e morta vizinha ou se dava uma tunda no pirralho, ali mesmo. Foi demovida de seu intento de surrar o fedelho pela chegada solene do padre. Instalou-se o ofício fúnebre. As rezas eram interrompidas, de quando em quando, por um "fica quieto" dito entre-dentes. A coisa já passava da conta. O padre parou o ofício e perguntou de quem era o menino. Sem saber onde enfiar a cara, a mãe se aproximou do pentelho, e arrastou-o pela orelha para fora do velório. Foi um berreiro só, ouvido mesmo apesar da distância que a mãe carregara o moleque. Nisso já o féretro deixava a sala do velório em direção à cova aberta.
O endiabrado moleque, ao ver o cortejo, desvencilhou-se da mãe e correu em direção ao caixão. "Abre essa porcaria", gritava o impertinente, esmurrando o caixão. "Abre essa porcaria, senão eu derrubo a velha com caixão e tudo no chão, e aí eu quero ver!" As pessoas estavam pasmas. Algumas se benziam. A mãe, em desespero, quase desmaia. O padre segurou o moleque pelo braço, horrorizado com o comportamento. O menino se debatia, e continuava bradando para que abrissem o caixão de dona Ganzá. Instalou-se uma balbúrdia incontrolável, cada qual tentando acalmar o moleque a seu jeito.
Finalmente o peste foi contido, agarrado por forte abraço do coveiro. Sentindo-se o único em condições de contornar a situação, o padre aproximou-se do menino, que soluçava. Com paciência, e buscando acalmá-lo, tentou saber por que ele queria que o caixão fosse aberto. Soluçando ainda, e com voz que beirava uma súplica, o menino explicou-se. "É que eu quero de volta o meu chiclete que eu botei no nariz da velha".
(Do livro "Trilogia Paciente" - Casa do Novo Autor Editora - SP - 1999.