Do espírito dos porcos

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A cidade estava em polvorosa. Afinal, em menos de dois meses, dois casos, no mínimo pitorescos, movimentaram os arredores do povoado. Primeiro foi a história arretada da Dondoca, a vaca xodó do coronel Jucá; e por último, circulando pelos quatro cantos e virando o mote de quase todas as rodas de amigos, a pendenga dos porcos de Dona Firmina. A recém-viúva está, exatamente agora, na sala do juiz, aos prantos, implorando ao magistrado a apreciação da causa.

– Excelência! – Dizia a pobre senhora. – O barrão do senhor Quermezé não pode ser sacrificado agora. Por Deus, excelência, evite!

– Calma, senhora! Ainda estamos contemplando o pedido... Essa audiência é de conciliação, preciso ouvir as partes, arrolar testemunhas. Não se aperreie.

– Excelência! É que o senhor não entende. Minha porca está prenha e se o barrão for sacrificado antes do nascimento dos bacurinzinhos, todos os bichinhos morrerão! O senhor nunca ouviu falar disso aqui na região? É dito por todos os antigos que...

– Não há nenhuma relação lógica nisso, minha senhora! A morte do barrão não vai interferir...

– Vai, sim! Vai, sim! – Vocifera a senhora enlutada, interrompendo o juiz. – Por favor, excelência! Já houve casos na cidade onde os bacurinzinhos morreram por causa da morte do pai... Por favor!

– Eu até entendo, senhora. A região possui algumas peculiaridades e isso está sendo levado em consideração...

Depois de argumentar, preliminarmente, o magistrado solicita a entrada do senhor Quermezé.

– “Premissão”! – Diz o homem do campo, o dono do barrão Tanhaii. – Vosmicê me chamou?

– Sente-se, senhor!

– Carece não, “dortô”!

– Para quando o senhor pretende sacrificar o seu animal?

– O Tanhaii está muito gordo e velho. Já viveu demais da conta. Por mim ele já estava era morto “pra mode” eu vender a carne e faturar uns “trocadinho”, mas Dona Firmina quase é que me bate quando me viu preparando o material pra sangrar o bicho.

– Você é desalmado e sem coração, homem de Deus! Se matar o bicho agora, também matará os bacurinzinhos filhos dele!

– Calma! Calma! – Interveio o magistrado. – Senhor Quermezé. A Dona Firmina me informou que há na cidade uma tradição: se o barrão for morto antes do nascimento da prole implica a morte dos animaizinhos logo após o parto. É verdade?

– Vixe Maria do céu, Excelência! Agora vosmicê me deixou desaprumado. Que diabo é que é prole e o que sucede com “impricar”? Estou me sentindo é um “barcurim” também pela “ingnorança” minha.

– O senhor conhece essa história de que matando o porco, os filhotes morrem também? É isso.

– Meu barrão nunca tinha cruzado com porca estranha. Sempre coloquei o bicho pra cruzar com as porcas de casa. Como nunca matei o bicho pra espiar, não sei informar se é verdade, não senhor.

– É a mais pura verdade, doutor! O povo diz que morre e não quero perder minha porquinha Tereré. Quem mandou o porco dele emprenhar a bichinha, ora!

– Que é isso Dona Firmina! Meu “animá” vive é solto no pasto. A senhora que cuide da sua porca e dê conta de segurar sua novilha, porque meu garanhão anda é solto!

– Quero apenas cuidar dos porquinhos que o senhor quer matar! Vou dar uns para o senhor quando a porquinha parir, homem de Deus!

Enquanto os contendores trocavam suaves farpas, o magistrado rememorava recente julgado, quando se discutiu a responsabilidade do coronel Jucá, fazendeiro respeitadíssimo na região, diante do inusitado problema causado pela urina da vaca Dondoca, animal de estimação do referido coronel. Em depoimento, a declarante afirmava que o mijo da vaca alagava o seu curral (o curral da declarante), matando, por asfixia mecânica, galos e galinhas. O processo, a pedido do coronel, correra em segredo de justiça, visando a preservação da intimidade da multípara quadrúpede bem querente do ilustre fazendeiro... De repente, o juiz, interrompendo os litigantes, intervém:

– Esperem! Façamos assim – Diz o juiz. – Em nome dos costumes, sentenciarei que o senhor, seu Quermezé, aguarde o nascimento dos porquinhos, sob pena de ser o responsável direto pelo óbito dos animais, em havendo morte. Para evitar problemas, o senhor vai esperar. CUMPRA-SE!

– Vixe, Excelência! Cumprir o que mermo? Vosmicê não viu nem meu bicho! Ele pode morrer de velhice...

– Morre não! Morre não! – Bradou Dona Firmina.

– Vamos correr o risco, senhor Quermezé – Sentenciou o juiz.

Alheios à discussão, Tanhaii e Tereré estavam enamorados e comemoravam, naquele instante, o nascimento dos porquinhos de Dona Firmina: eram bichinhos lindos que se lambuzavam no chiqueiro de Quermezé.

Dona Firmina chega a casa. Entra. Vai ao quintal. De repente, a mulher solta um berreiro que se podia escutar na casa de seu Quermezé. Ouviu-se o grito:

– Onde está minha porquinha?!

– Está aqui, Dona Firmina! Os bichos nasceram – Grita seu Quermezé!

Hoje, vasculhando os arquivos do fórum, tive acesso a esse caso, esquecido entre tantas estradas vicinais que permeiam as prateleiras – ruas e vielas dos tribunais –, onde os costumes nortearam as ações e serviram para que o magistrado fundamentasse a decisão.

Fortaleza-CE, 26 de novembro de 2009.

16h40min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 14/05/2013
Reeditado em 15/05/2013
Código do texto: T4290930
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