O DILEMA *
Quando tocava o telefone, seja o fixo ou celular, sentia um incômodo, as mãos ficavam frias, temia pelos cobradores sempre mais insistentes. Estava na situação de haver muito mês para pouco salário. A organização financeira pessoal estava um caos, com extenso rol de responsabilidades pendentes, tirando-lhe o sossego. Como bancário temia ser incluído na lista do SPC, ameaçando o emprego. As contas eram empurradas com a barriga, negociando prazos, apertando aqui e ali. Não fora a tentação de recorrer a outros meios para se desafogar, poderia continuar no esquema de ir protelando, porém, precipitado, foi socorrido por um agiota, com juros escorchantes, para quem não tinha muita conversa fiada. Foi um abraço de afogado, vendera a alma, não conseguia equacionar aquela dívida interminável. Na terceira renegociação não havia mais argumentos, a coisa estava ficando feia, insustentável. Temia acordar no meio da noite e não mais conciliar o sono, num processo de auto-obsessão que o martirizava. Definhava a olhos vistos, aparentando alheamento e depressão.
Não raro ajudava na tesouraria, contando montanhas de notas, parecia um paradoxo tanta soma à mão, e ele sem vintém. Ironizava consigo mesmo, lembrando a saudosa mãe que dizia ter lido a sorte com uma cigana e a mesma ter afirmado que muito dinheiro passaria pelas mãos de seu único filho, de certa forma não errou. O problema era que apenas “passava”, parecendo um faminto trabalhando no preparo de alimentos, sem poder saciar-se.
Há dias evitava encontrar-se com o credor ávido e mal educado, parecendo ameaçá-lo. Fugia deste como o diabo da cruz, tentando ganhar tempo, buscar uma saída, uma solução, sem saber qual seria, ou a quem recorrer. Ele poderia colocar em cobrança alguns dos cheques, que voltariam por falta absoluta de fundos, e ficaria desempregado, mas, pensava, não poderia interessar a ele a sua falência, condição em que também perderia.
Barbeava-se pela manhã, preparando-se para mais um dia de trabalho, quando tocaram a campainha do apartamento. À porta estava o dito cujo, com olhar de trunfo por encontrá-lo, saboreando o encontro, entrando na sala sem esperar pelo convite. Passeou os olhos pelo ambiente, modesto mas bem arranjado, como quem avaliava as posses do devedor, contabilizando o seqüestro de algum bem. A forma como foi descoberto o seu endereço o deixava ainda mais confuso, por certo tinha informações sobre ele, nunca forneceria seu paradeiro a estranhos. E, sem precisar dizer palavra, o intruso esperou pela iniciativa do assustado, esbanjando-se à vontade no sofá, como se fosse íntimo da casa.
Na troca de olhares, que dispensava comentários, lia-se o desespero do pobre, com espuma de barbear ainda no rosto, mortificado pela surpresa desagradável. Ficou atônito e mudo, olhando patético e petrificado para o visitante. Instantes que pareceram séculos, o medo e a impotência estampados, como uma caça encurralada pelo predador.
Tomando a iniciativa, resoluto e implacável, contabilizava os juros sobre juros, fazendo uma matemática rápida e temerária, mostrando em números o buraco em que se metera o incauto. Exigiu um cheque em branco, confiscaria o décimo terceiro, a receber dali a dois meses, além de uma promissória exigindo o aval de algum parente ou amigo, a ser entregue incontinenti, no prazo de dois dias. Não perguntou se concordava, se as contas estavam certas, apenas fez seus cálculos e exigências. Sabia que o tinha à mão, feito uma marionete, aterrorizado.
Quando viu-se só, parecia que o mundo tinha desabado, sentiu cólica intestinal e por pouco não se sujava todo, necessitando de novo banho. Estava aflito, sem rumo. Teria um dia inteiro pela frente, no atendimento de filas intermináveis, fazendo pagamentos a idosos e a clientes nem sempre pacientes, onde obrigava-se a ser simpático e atencioso, disfarçando o conflito íntimo que o consumia. Nem tirou o café da cafeteira, desabando inconsolável sobre a poltrona, esmiuçando alternativas, tentando concatenar alguma idéia que o socorresse, ou pelo menos lhe desse algum fôlego. Se o décimo terceiro já não lhe pertencia, poderia antecipar as férias. Não seria a primeira vez que abriria mão de alguma viagem, consolaria-se com a leitura de algum livro ou a passeios na própria cidade, sem maiores custos.
Naquele dia fora designado para trabalhar num posto de serviço dentro de uma empresa, era dia de pagamento dos funcionários. Enquanto se preparava para o atendimento, contando o dinheiro que recebia no caixa, a fila externa se avolumava. Todos os colegas se agitavam nos preparativos para o labor intenso que se iniciaria a seguir.
No decorrer do expediente, o local atulhado de clientes orientados em fila única, o vozerio da pequena multidão que mostrava inquietação, alguns portando contas a serem descontadas dos pagamentos a serem recebidos. Tudo dentro da normalidade do quinto dia útil, até que uma voz forte, dissonante, se fez ouvir, autoritária e imponente, ecoando no ambiente e pondo todos em silêncio. Eram três homens, de fala rápida, nervosos, intimidando os presentes e os funcionários com seus revólveres ameaçadores, dando ordens de um assalto.
Em gestos velozes dirigiam-se aos caixas ordenando que passassem os maços de notas para fora do balcão, as coisas acontecendo em segundos de ansiedade e de temores, o receio de serem alvos daquelas armas apontadas.
Na entrega das notas encintadas em maços de cem reais, dois volumes caíram e, no afogadilho dos meliantes, ficaram despercebidos por todos, ficando no chão, no lado interno dos caixas, praticamente dentro do seu guichê de serviço.
Encostado na parede, evitando qualquer movimento suspeito, mantinha-se imóvel, observando aqueles dois maços esquecidos, bastaria empurrá-los com os pés, disfarçando no cesto de lixo, ninguém perceberia, ficaria à conta dos assaltantes, o Banco se ressarceria da Seguradora, e ele estaria a salvo de suas encrencas financeiras.
Momentos em que transpirava pelo corpo todo, afogueado diante à possibilidade do ilícito, martirizado pelas circunstâncias de angústias acerbas que o vitimava. Todos os seus valores pareciam falir diante àquela circunstância tão propícia e oportuna, bastavam poucos gestos, ninguém daria conta, todos estavam apalermados com o inusitado. Desenrodilhava-se diante a si todas as suas inquietações, o receio de ser pilhado e preso, em contraste com a possibilidade de sair ileso e com os problemas resolvidos. Decisão que reclamava uma atitude urgente, não restando espaços para vacilações, seria o tudo ou o nada. Entre o gesto extremo e a apatia, contudo, residia toda as suas convicções e valores, postos em xeque pela conjuntura asfixiante. A lembrança de suas dívidas, a ameaça tácita do credor irredutível e truculento o impulsionavam ao delito, a sua formação o impedia de agir, num dilema atroz.
Pressionado, sentiu a cabeça, em rodopios, as faces avermelhadas, a transpiração ofegante dando conta de seu suplício, até o desmaio despropositado, gerado, possivelmente, pelo estresse extremado.
Acordou, horas depois, no ambulatório médico da empresa, medicado com tranqüilizantes, sendo assessorado pelo representante sindical da categoria profissional, que procurava acalmá-lo. Negociado com o Banco uma licença de 15 dias, bem como, a título de indenização pelos transtornos, o valor de um salário integral, sem descontos.
Ao quitar seus compromissos, sentado na praça de um jardim, revivendo suas lembranças, só querendo refletir e afastar de si a tentação que teve em participar daquilo. Considerando com seus botões de que sim, dependendo as condições e situações, podem propiciar o ladrão, mesmo a alguém de quem jamais poderia esperar, tido acima de qualquer suspeita. Ou ainda que não sabemos exatamente quem somos, ou como agirmos diante a tentações e pressões. Ele mesmo duvidava de si, e de qual atitude teria tomado, caso não apagasse naquela circunstância. Seria vencido por suas fraquezas e seu desespero, ou resistiria com suas convicções e caráter? Restava a dúvida a amargar sua consciência.
PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, JANEIRO DE 2014.