De Belém para Belém

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...E Jesus resolveu voltar justamente no papado de Francisco Severino Arruda da Silva – o Chiquinho de D. Quequé –, conhecido pela Santa Igreja Católica como Sisto V, o arretado! O cearense que ao se tornar papa criou a versão das Sagradas Escrituras em Nordestinês, mantém-se em comunhão com Cristo, cultuando o hábito de rezar a oração que o Pai ensinou: ‘Pai nosso que fica aí em riba. Nunca falei mal de tu, homem de Deus! Traz pra nós o que tu tem’...

Mas o menino Jesus, aquele mesmo, nascido em Belém, na Judeia, resolveu voltar. Resolveu voltar?! Resolveu. E o anúncio foi encontrado pelo camareiro do Papa. A mensagem, estampada no quadro de avisos existente no interior do apartamento papal, assustou o franzino beato cearense Iquinha, assessor e confidente de Vossa Santidade. A missiva sentenciava:

E eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um, segundo as suas obras... Nasci em Belém, na Judeia, mas, como todo mundo diz que Deus, meu pai, é brasileiro; e a voz do povo é a voz de Deus, voltarei em Belém – do Pará –, no Brasil! Em 24 horas estarei entre vós!

(Céu, 18 horas do dia 14 de fevereiro de 2013).

– Jesus vai voltar! A promessa das escrituras vai se cumprir! – esbravejava o serviçal, copiosamente, pelos corredores do templo. – A Copa do Mundo será no Brasil, as Olimpíadas também serão pras bandas de lá; e não é que os brasileiros foram escolhidos para sediar a descida do Cristo! Nossa, que tudo! Vou avisar ao cardeal é agora mesmo!

Na pressa, o jovem palaciano derrubou uma das mitras do papa. Na parede, a foto do líder religioso, silenciosa, parecia mover-se diante de tamanho flagrante de incredulidade, pois o proclamado pela voz do penitente não retratava a realidade interior daquela alma... O miserável nem sequer teve a boa vontade e a prudência de checar se havia assinatura ou se se travava de carta apócrifa! E não havia mesmo nenhuma assinatura – apenas manchas de sangue, mais fortes e escuras, ao final do texto, transcendendo à mera percepção humana.

Além da mitra que rodopiou nos aposentos do papa, caindo da mesa, algumas estolas e outros paramentos, usados nas celebrações, ficaram espalhados pelo chão dos corredores, colorindo, durante a passagem do mensageiro cearense, o salão de branco, verde, vermelho, roxo e róseo. Carecendo de exorcismo, o desgraçado homem, tropeçando na estola roxa que derrubara, esbarrou num grupo de religiosos que caminhava silente, em profunda meditação. O mais baixo e gordo do grupo, com o esbarro, caiu, derrubando um dos candelabros e se queimando com respingos de vela. Ouve-se um grito:

– Misericórdia!

– Misericórdia! – responde o atabalhoado noviço.

A primeira voz possuía ar de compaixão e desprendimento para perdoar ou ter piedade; na segunda, havia um coração miserável, em êxtase de sofrimento.

– Misericórdia, seu estabanado! – responde, finalmente, o gordo, barrigudo e careca, depois de se erguer. Viu algum fantasma, irmãozinho?

– Arrependam-se! Jesus chegará em 24 horas! Li o aviso na sala do Santo Padre.

– O que está dizendo? – comenta o gordo, colocando uma vela apagada na boca.

Decepcionado com a atitude do rechonchudo, o cardeal Camerlengo, um dos religiosos do grupo que seguia em oração, repreendeu-lhe a atitude, com olhar certeiro. Entendendo a censura, Vincent, o gordo, deu de ombros, escondeu a vela e o castiçal e cruzou os braços, junto às costas, esboçando inconsistente sorriso meia boca.

– Mostre-me a mensagem – diz o cardeal.

– Venha! Acompanhe-me, Vossa Excelência Reverendíssima!

O grupo entra nos aposentos do papa. O cardeal se aproxima, lê cuidadosamente o que está escrito, tenta decifrar o autor da brincadeira, mas, na dúvida, sentencia:

– Mas Ele vem assim, avisando de última hora? Não teremos tempo suficiente para pintar a Catedral da Sé de Belém, envernizar os bancos do salão principal... Como avisaremos aos cardeais e arcebispos cristãos? Os aeroportos ficarão uma loucura!

– Esse Cristo é danado mesmo, mãe de Deus! Está fazendo uma prévia da Copa do Mundo e Olimpíadas, testando nossa capacidade de mobilização, nossos aeroportos... Vossa Excelência Reverendíssima não vai decepcionar o homem, não é mesmo? Seria um vexame terrível! – intervém o beato Iquinha, demonstrando preocupação.

– Avisarei ao papa. Ah, e obrigado por você, finalmente, entender que notícias imperativas devem ser transmitidas por mim.

Iquinha, tornando-se inaudível, comenta: Esse coitado se sente! Eu digo é valha!

O arcebispo de Belém é avisado e as obras se iniciam imediatamente.

No Vaticano, o papa elogia a atitude proativa do cardeal Camerlengo, tecendo públicas referências elogiosas durante celebração extraordinária:

– O entusiasmo e o empenho desse Homem de Deus devem ser seguidos por todos! Precisamos pensar e agir antecipadamente. Quem sabe prevenir não teme os imprevistos, pois a prudência é nobre virtude.

O Santo Padre dá a bênção a todos e o Vaticano se transfere para o Brasil, partindo em vários aviões.

O arcebispo de Belém, sisudo e compenetrado, dá ordens e pensa: ‘Todos dirão a Ele que fui o responsável pela limpeza do Templo, conserto dos assentos, ensaio dos monges. A Santa Missa precisa ser em latim! Ele vai gostar, vai lembrar-se de mim... Mas o Sumo Pontífice é cearense, gosta das leituras em Nordestinês. Já sei, lerei as duas leituras em Nordestinês e farei a homilia em latim...’

Ao meio dia, na Igreja da Sé de Belém, por ocasião do Angelus, o arcebispo faz a leitura anterior à homilia:

– Daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai. Pois como foi dito nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem [...]; assim será também a vinda do Filho do homem. – E prossegue:

– Vigiai, pois, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor; sabei, porém, isto: se o dono da casa soubesse a que vigília da noite havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria minar a sua casa. Por isso, ficai também vós apercebidos; porque numa hora em que não penseis, virá o Filho do homem.

O fiéis ouviam a Palavra, mas estavam absortos em suas próprias sublimações, tentando entender a invasão repentina de tantos religiosos. O arcebispo, pensava na festa, na recepção, na casa limpa, nos elogios... E a cidade de Belém ia se enchendo de mitras – vista pelo Google Earth, a capital paraense tomava forma de pintas coloridas que se moviam, apressadamente, todas em direção ao Templo da Sé. Faltavam menos de seis horas para a aparição.

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São 18 horas (15 de fevereiro de 2013). Ouvem-se os toques das Ave-Marias.

Iquinha, sob o efeito de tranquilizantes, sente as imagens da carta se diluírem; as letras grafadas em vermelho, a conversa com o cardeal... E vai perdendo a memória recente; a visão, torna-se anuviada, turva, e as badaladas prosseguem, estridentes, incomodando os ouvidos do noviço.

‘Seria a anunciação da chegada do filho do Homem?’ – pensa Iquinha. O jovem se ajoelha e, resignadamente, confessa os pecados que o inquietam, pedindo perdão.

O tilintar dos sinos da Catedral vai ficando distante. Nada de alarido nem sons de trombetas. A Sé parece em transe, todos deliram. Num último reflexo de consciência, Iquinha observa as paredes pintadas da Catedral, pessoas correndo, o Santo Padre sentado, em reflexão, e o arcebispo anfitrião, incrédulo, olhando para o céu.

– Misericórdia! – proclama o arrebatável beato. Ofereço-me, Senhor!

Jesus está vindo para o Juízo Final. Ele desce, diante de todos, e proclama:

– Sempre estive em vosso meio, todos os dias, buscando justiça e paz...

Iquinha, antecipando os acontecimentos previstos e somente a ele revelados, dá uma ordem. Lá de fora da Catedral, tambores, ganzá, reco-reco, banjo, flauta, maracás, afoxés e pandeiros ecoam memorável carimbó durante a ascensão dos escolhidos para o arrebatamento.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 29/04/2013
Código do texto: T4265951
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