Anjo ou demônio?

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Claris Vident tenta desvencilhar-se das aldrabas da consciência, mas está acordado no sonho de alguém. Vindo lá de fora, suave brisa toca-lhe a pele, fazendo-o cotejar, pelas frestas da janela, o frescor da noite e a densa e amarelada lua que reina acima das nuvens e da bruma, quase no meio da capital italiana, em Roma. A pele, sentindo os zéfiros, arrepia-se; a mente, singrando o espaço, volatiliza-se na tentativa de perscrutar as insondáveis peripécias da mente humana.

Vasculhando a Biblioteca Apostólica Vaticana, a mais antiga da Europa, fundada por Nicolau V, em 1450, Claris retoma a leitura de um dos mais de oito mil incunábulos do acervo e, finalmente, encontra o que busca: a sequência histórica prevista por São Malaquias. Num calendário, anexo a uma das páginas, a certeza: João Paulo II, o centésimo décimo papa da Igreja católica, nascera durante a ocorrência de um eclipse solar, aos 18 dias do mês de março de 1920... Fora o papa que conhecera na infância e na adolescência – e que o fizera seguir o caminho do Senhor.

Perquirindo o texto amiúde, surgem, de plano, as verossimilhanças. Ele se volta para o lema destinado a João Paulo II, De Labore Solis, e se espanta ao descobrir que ele foi o único pontífice da lista a nascer e a ser sepultado durante um eclipse.

As profecias ‘malaquianas’ se firmaram ao longo do tempo, mas a Bíblia permite que demônios possuam conhecimento limitado do futuro. Se demônios expulsam demônios, eles também podem, se Deus permitir, profetizar – essas ponderações incomodavam o jovem religioso, pesquisador das hermenêuticas, exegeses, dogmas e incertezas católicas. “E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam os vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes” – Vident lia, exatamente, esse trecho quando o livro lhe escapou pelas mãos e caiu. Ao pegá-lo, esbarra na página que o remete ao ano de 1143. Estava escrito:

Ex Castro Tiberis – Do Castelo do Tibre – Papa Celestino II (1143-1144); Inimicus Expulsus – Inimigos Expulsos – Papa Lúcio II (1144-1145); De Magnitudine Montis – Procedente de Montemagno – Beato Eugênio III (1145-1153).

Correndo os olhos pela folha, ele busca os últimos três nomes da lista:

De Labore Solis – Do Trabalho do Sol – Beato João Paulo II (1978-2005); De Gloria Olivae – Da Glória da Oliveira – Papa Bento XVI (2005-); Petrus Romanus – Pedro Romano – Papa Pedro II.

Um a um, tenta associar nomes, características e previsões. Todas cumpridas. Todas vinculadas entre si. Os nomes dos três primeiros papas, ligados aos três derradeiros (dois ainda em aberto), pegos aleatoriamente num golpe de visada de Claris Vident, conduziam-no ao número ocultista 33 – uma variação desse número-mestre da numerologia espiritual seria 333, que fala da morte, ressurreição e ascensão; 333 dividido por 3 daria 111 – o exato quantitativo dos lemas de São Malaquias!

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Nas ruas de Roma, próximo ao Hospital da Viale del Monte Oppio, Maria Venturosa concebe linda criança do sexo masculino, na calçada, em plena luz do dia, assistida apenas pelo marido, Giuseppe Pellegrino. Curiosos se aproximam, observam o clamor da primípara, mas seguem, alheios aos apelos do casal. A poucos metros da trindade terrena – Maria, Giuseppe e o pequeno –, um C-Zero, responsável pela segurança do papa, para num dos semáforos. Sentado no banco detrás, Claris Vident percebe a criança ao chão. Observa os resquícios do sangue manchando a rua; assusta-se com o tamanho da placenta parecendo bolo disforme de carne... E se emociona ao perceber que ainda havia elo entre mãe e filho, ligados pelo acinzentado cordão umbilical. Incontinenti, desce do carro, pega a criança e, ignorando a presença dos pais do pequeno, proclama: Pietro!

– Sì, sarà chiamato Pietro! – responde Maria Venturosa, antes de cair exânime, falecendo segundos depois.

Giuseppe Pellegrino, percebendo a morte da esposa, corre desvairadamente e é colhido por um carro que trafegava em alta velocidade pelas ruas de Roma. Claris Vident, agarrado a Pietro, transita entre a alegria do nascimento e a trágica realidade da morte; entre o fervor de celebrar a inocência e o delírio de consternar-se com o infortúnio e, quando torna a si, tem nas mãos o fruto de um amor – e a responsabilidade cristã de dar amparo ao indefeso Pietro.

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Bento XVI está no leito de morte e chama o Camerlengo, com urgência. A camareira, atendendo ao pedido, retira-se. Instantes depois, reaparece, acompanhada de Claris Vident. O papa observa atentamente as feições do cardeal, pede para Vicenza se retirar e confidencia:

– Vident, meu fiel e amado servo, minha hora está chegando. Sinto a presença da morte e de amigos e familiares que partiram antes de mim. Entretanto, não desejaria partir sem pedir que interceda junto ao conclave em favor de Pietro. Sei do temor que esse nome causa a todos – Vossa Santidade sentia dificuldade ao falar e as palavras ficavam cada vez mais fracas –, mas acredito que Pietro dará continuidade à minha obra.

– Ele ainda é novo demais, Ratzinger – responde Vident, amigo e confidente do Santo Padre.

– Sim! – exclama o papa, extremamente emocionado. – Ele será o papa mais novo da Santa Igreja de Cristo, fundada por Pedro, Vident, mas a profecia deve ser cumprida. Petrus Romanus, que desde o nascimento vive entre nós, iniciará seu pontificado na suprema desolação do mundo, aos 33 anos de idade!

– Farei o possível. Agora descanse. Vossa Santidade está debilitado, precisa deitar.

– Quando Pietro me suceder, Vident, entregue a ele esta carta, por favor.

– Sim, meu amigo! – responde Vident, segurando fortemente o brasão que ostentava, ornamentado com duas chaves, uma prateada e outra doirada. Sem se aperceber, o Camerarius toca o ombrellino, brasão da Sede Vacante, antevendo, instintivamente, que haveria novo tempo entre a morte de um papa e a eleição de outro.

– Último pedido, Vident.

– Vossa Santidade só precisa descansar...

– Informe ao mundo sobre a minha morte, revelando-me como Bento XVI, De Gloria Olivae, e retome o procedimento tradicional, batendo gentilmente o martelo de prata papal na minha cabeça, chamando-me pelo nome. Entretanto, remova o Anel do Pescador do meu dedo, chame todos, mas não o corte na presença dos demais Cardeais – o último de nós, aquele que cumprirá a profecia, precisa estar ligado a mim pelo Anel do Pescador. Pietro entenderá tudo quando vir a carta...

– Não tenho essa autoridade, Ratzinger!

– Receba a carta, Vident. Preciso ir...

Claris Vident recebe a missiva e, internamente, promete cumprir a promessa de tornar Pietro o sucessor de Bento XVI. Volta-se para o Papa, após guardar o envelope e:

– Sua bênção, Santo Padre!

Sem resposta.

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Vident destruiu a face do selo do Papa com o Martelo de Prata. Começaram os preparativos para o conclave e o funeral. Onze dias após a declaração da morte de Bento XVI o conclave se reuniu. Findo o novemdiales, celebrou-se a missa Pro Eligendo Papa. Em seguida, iniciou-se o confinamento na Capela Sistina. O Camerlengo leu o juramento... Foram onze dias negros e, finalmente, o branco dia surgiu:

– Reverendo Cardeal, aceitas a tua eleição canônica como Sumo Pontífice? – pergunta o Decano ao papa eleito.

– Sim! – é a resposta.

O Decano volta a inquirir:

– Como queres que te chamemos?

– Petrus Romanus, Papa Pedro II.

O primeiro dos Diáconos vai à varanda anunciar a boa nova:

‘Anuncio-vos com a maior alegria: Temos papa! Senhor Pietro, Cardeal da Igreja Católica Romana, que escolheu para si o nome de Pedro II’.

Ao se dirigir à varanda da Basílica para a bênção Urbi et Orbi sobre a cidade de Roma e o mundo, Vicenza que havia lido a missiva de Bento XVI, antes de a carta chegar às mãos de Petrus, esbraveja, crivando-lhe um punhal no coração:

– Vade retro Satana!

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 28/04/2013
Código do texto: T4264156
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