A testemunha
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Estar ali, naquela madrugada, foi-me extremamente perturbador.
Era Setembro, época inicial dos invernos chuvosos no Vaticano, e a temperatura me proporcionava agradável sensação de bem estar – pelo menos meus quase cento e cinquenta quilos estavam livres dos verões quentes que, iniciados normalmente em Maio, causavam-me terrível sudorese.
Eu transitava pelos corredores, próximo aos aposentos de Vossa Santidade. Era dia de vigília e estávamos em oração por vinte e quatro horas, desde as seis horas da manhã do dia anterior. Era madrugada, mais de quatro horas, já quase no cerrar da Lua, esperando a revisitação do Sol. Caminhava tranquilo, com a estola enrolada numa das mãos, mas, por descuido, ela caiu. Baixei-me para apanhá-la no exato instante em que escuto passos destoantes: alguns pareciam aproximar-se; outros, mais pesados, tocavam o chão com voraz energia, distanciando-se de mim. De repente, escuto uma porta bater. O som, retumbante, tilintou em meus ouvidos, destruindo a paz adquirida ao sabor das ladainhas gregorianas e das suaves melodias e acordes, tocados no Fritz Dobbert da Capela Sistina por um noviço, exímio pianista.
Olhei para o teto. O monumental afresco de Michelangelo me pareceu estremecido... Inconscientemente, recordei-me do ‘Juízo Final’ – a belíssima obra abrolhou em minha mente como a revelar que algum julgamento se efetivara. Senti a própria força do Cristo, o juiz imparcial, direcionando os eleitos para o céu, pela sua direita, e dando aos condenados o fardo de esperar Caronte e Minos. Mas me enganei, pois os acontecimentos seguintes me revelariam um pouco do inferno humano, aqui na terra...
Em não mais que dois minutos, curiosos, com terços nas mãos, surgiram. Aos poucos, a imagem desenhada no altar da Capela Sistina se dissipou dentro de mim, dando lugar ao burburinho de vozes de religiosos, com os mais variados sotaques, que se amontoavam do lado de fora dos aposentos do papa, na entrada principal. Não era fácil esconder meu corpo, mas os presentes passavam por mim e me ignoravam. Poucos tinham acesso ao interior dos aposentos. Aproximei-me de uma das portas laterais. Para manter-me incógnito, permaneci de joelhos e, engatinhando, forrando as dobras do corpo com a estola, arrastei-me até conseguir ouvir, através da porta, o que conversavam:
– Quem o encontrou? – pergunta o Padre Diego Lorenzi, secretário do Sumo Sacerdote.
– Vincenza, uma das freiras que trata dele, senhor – respondeu o interlocutor. – Tão logo me procurou, revelando a tragédia, tratei de avisar o ocorrido ao senhor.
– A partir de agora, para todos que entrarem aqui, fale que Vossa Santidade foi encontrada por mim – responde o padre, interrompendo.
– Sim, senhor – responde a voz, sem questionar os motivos da imposição.
– Chame a irmã, rápido!
Momentos depois, o padre italiano Di Crespo entra nos aposentos, acompanhado da religiosa. Sem nenhuma cerimônia, Lorenzi a interpela, ameaçadoramente:
– Você não esteve aqui antes de mim, entendeu?! Prometa silenciar-se sobre o que viu, até sua morte, prometa!
Assustada, a pobre senhora assentiu, acenando com a cabeça. Voltando-se para Di Crespo, Lorenzi determina:
– Pegue a Santa Cruz do templo, rápido!
Com a cruz por sobre os ombros da religiosa, o secretário do Vaticano inicia uma oração: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...”. Os demais presentes o acompanharam no ritual. “Repita comigo” – diz Lorenzi, fitando os olhos de Vincenza: “Eu, serva de Deus, prometo calar-me e nunca revelar o que vi aqui, nesta noite, sob pena de ter minha alma lançada no fogo do inferno para todo o sempre”!
Não houve objeção. Todos se benzeram novamente e Di Crespo foi retirado do quarto, levando a pobre irmã que, consternada, chorava copiosamente.
Por fim, levantei-me – um noviço me ajudou – e me dirigi até a porta principal, onde alguns religiosos ainda conversavam. Pareciam temerosos e incrédulos. De repente, um arcebispo comenta:
– Sua Santidade estava tão bem hoje à tarde. Mas me pareceu apreensivo depois da ligação do arcebispo Lefebvre.
Eu estava cansado, meus joelhos doíam, mas decidi entrar para ver o Santo Padre. O corpo dele se mantinha numa posição como se estivesse sentado na cama – suponho que lia quando tudo aconteceu, pois os óculos permaneciam sobre o nariz. Ao lado do corpo, na escrivaninha, havia folhas soltas que me pareceram a preparação do próximo discurso. De repente, Di Crespo se aproxima de Lorenzi e o informa que os embalsamadores estavam lá fora, esperando autorização para dar início aos trabalhos. Estanhei a rapidez do atendimento, para aquela madrugada chuvosa de uma quinta-feira de Setembro. Desejei escutar o que conversariam, mas fui intimado a retirar-me dos aposentos.
Novamente fora do quarto, entre respeitáveis arcebispos e religiosos recém-chegados, permaneço ouvindo, apenas, intermináveis suposições:
– O papa andou descobrindo fatos estranhos e comentou com alguns poderosos da Santa Igreja que investigaria as denúncias... Há rumores de um ninho de maçons entre nós! – Sussurrou um longevo religioso.
– A Igreja é tradicionalista. Um papa cheio de ideais de mudança, recém empossado, deveria ser mais prudente antes de investigar sobre murmúrios de corrupção – toda máfia é rígida demais quando julga! Além disso, o Santo Padre também andava buscando informações sobre o Banco do Vaticano e possíveis infiltrações, é verdade, de maçons. Até boatos de perquirir a vida dos Illuminati existem... Agora, somos todos suspeitos do assassinato de Vossa Santidade.
Ao ouvir essa última afirmação – “somos todos suspeitos” –, estremeci. Por que todos suspeitos? Que verdade haveria por detrás das máscaras apresentadas? Por que tanta firmeza nas palavras do arcebispo, anterior às investigações?
A imprensa chega e os repórteres, sequiosos, querem ouvir o pronunciamento oficial da Igreja. Afinal, o que teria acontecido? Quem encontrou o corpo? Qual teria sido a causa mortis de um papa – tão – novo e saudável? Informado da chegada de repórteres, Lorenzi fala em nome do Vaticano: “O Santo Padre, infelizmente, faleceu em decorrência de infarto do miocárdio”. Foi a resposta fria e lacônica da Igreja.
Para mim, testemunha, alguns fatos pareceram estranhos. Um: como duas pessoas, saindo do mesmo lugar, tomam rumos tão diferentes? A primeira delas foi embora; a segunda, passou por mim, chorando – era Vincenza. Teria uma delas visto algo, flagrado a outra no momento do suposto crime? Dois: Como explicar a chegada dos embalsamadores em tão curto espaço de tempo, entre a descoberta do corpo e a possível solicitação do serviço? Três: as feições do Santo Padre eram de profundo sono – não havia sinais de sofrimento nem de aparente dor. Para mim, ele sorria, zombando das circunstâncias da vida. Quatro: Como explicar tantos religiosos acordados àquela hora da madrugada? Eu estava em vigília, mas muitos deveriam estar dormindo. Finalmente: Quem teria interesse em matar o representante de Deus aqui na terra, eleito com tanta festividade e celebrado em todos os recantos do planeta? “O seu vinho é veneno de serpentes e peçonha cruel de víboras”.
Falecendo, misteriosamente, com apenas trinta e três dias de pontificado, o Papa João Paulo I não teve tempo de dizer trinta e três... Nem de realizar pneumotórax! Jesus, aos trinta e três anos de idade, atraído pelas pregações de João Batista, foi batizado no Vale do Jordão – e, depois, lançado à própria sorte rumo à crucifixão diante de dezenas de curiosos. E o grande rei Davi reinou em Jerusalém por trinta e três anos! Espantosa numerologia espiritual. Trinta e três é um dos números-mestre, o de mais alto grau...
Diga trinta e três.
Trinta e três... Trinta e três... Trinta e três.
Cumpriu-se a profecia anunciada por irmã Lúcia, amiga de João Paulo I. No Carmelo de Santa Teresa, durante visita do então Patriarca de Veneza, em Coimbra, a irmã, como era de costume, chama-o de Santo Padre. O então Cardeal Luciani pergunta:
Por que me trata dessa forma?
– Vossa Eminência um dia será eleito Papa.
O cardeal respondeu:
Sabe-se lá, irmã…
E na resposta, a profecia:
– Será, sim, mas seu pontificado será muito breve.