=O CAIXEIRO VIAJANTE=
O CAIXEIRO VIAJANTE
01.04.013
Ronaldo Trigueiros Lima
= A memória de tio Edgard =
As estórias de “Tio Vavá” sempre me despertaram curiosidades, não só pelo humor com que elas eram contadas, mas, sobretudo, porque traziam para o meu conhecimento, um resquício de um tempo que nunca vivenciei.
Suas narrativas eram “causos”, recheados de bom humor e picardia, variando em torno de familiares, que até mesmo por força de um maior contato, em consequência de sua paraplegia, instigariam suas “espetadas anedotárias”, colocando-o (mais adiante), como inspirador de alguns dos meus contos.
Este é um deles:
Ora se deu, já faz tempo, início do século XX, quando o transporte de mercadorias era feito por caixeiro viajante, em tropas de burros e mulas, que venciam o paredão da “Serra do Mar”, interiorizando-se por trilhas poeirentas, levando e trazendo novidades para as fazendas encravadas no interior.
Nada detinha esses visionários pioneiros, amados e mui esperados por toda aquela gente, principalmente os fazendeiros e as moçoilas solteiras casadoiras, que no afã de conhecer as novidades e as últimas do progresso, recepcionavam esses herdeiros dos antigos mascates, com toda amabilidade e namoricos”.
Edgard era um jovem caixeiro viajante, que seguiu os passos do tio que o criou, (o sempre lembrado patriarca Hermes.) Bem apessoado, de boa família, boa conversa, o rapaz chamava a atenção por onde passava, não apenas pelas mercadorias que trazia dos grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas, sobretudo, por sua vaidade inconteste, que despertava nas moças, suspiros e alvoroços. Era tido como “bom partido”, portanto, alvo da cobiça das famílias que viviam naqueles rincões.
A novidade era sem dúvida o seu ponto forte, sua marca registrada, que evidenciava sua exoberância, toda vez que visitava uma fazenda.
Sua chegada era sempre uma festa. Além dos regalos, e mercadorias requisitadas, transformava-se em um verdadeiro noticiário ambulante, que o colocaria como uma fonte fidedigna de informações. Isto é, um verdadeiro “sábio” pronto para consultas, e por consequência um respeitado Conselheiro, apto para opinar, não somente aos fazendeiros, mas principalmente aos “tabaréus”, que humildemente declinavam os chapéus de palha em respeito ao “douto” moço da cidade, sempre pronto a oferecer “conselhos”.
Um dia, não mais que de repente, numa de suas chegadas à fazenda “Cruz Alta”, estranhamente paramentado com trajes não costumeiros, com viseira dourada e touca de couro, (semelhante as que eram utilizadas pelos pilotos pioneiros dos aeroplanos de asas duplas), apareceu dirigindo uma estranha viatura motorizada, barulhenta, que chamava orgulhosamente de automóvel. Algo até então nunca visto por aquelas bandas, o que causou de “per si”, como se pode imaginar, o maior alvoroço.
A tal geringonça levava espanto onde quer que passasse. Principalmente em relação aos matutos que eram atraídos pelo “UAUAUA!!!” espalhafatoso da buzina do tal automóvel.
Foi aí justamente numa de suas vindas, já próximo à fazenda do coronel “Genuíno das Onças”, que ora se deu o acontecido. Vinha ele pela estrada de barro seco, dirigindo o seu carro, carregado de mercadorias, apreciando a paisagem com aquele “ar superior”, cumprimentando (através da buzina) as pessoas que margeavam a estrada, quando se deu o inesperado. Assim, repentemente, o carro “engasgou”, obrigando-o a descer com o fito de introduzir (conforme indicação do manual) um acessório em forma de manivela na parte frontal do carro, que movimentaria o “virabrequim”, fazendo com que o motor do carro enfim funcionasse de novo, coisa que o nosso herói, do tipo “sem jeito mandou lembrança”, não tinha o menor habilidade, ou si quer conhecimento.
Logicamente que algumas pessoas que passavam, se solidarizavam com ele, prontificando-se prontamente ao manejo da tal manivela sacrificante. Mas isso nada adiantou, pois o problema do “bicho” era a total ausência do combustível, que por distração, ou desconhecimento, não tinha sido devidamente abastecido e nem calculado.
Sendo assim, qualquer esforço de virar a manivela seria totalmente em vão.
Pouco a pouco, o jovem caixeiro viajante foi ficando inteiramente sozinho, posto ao sol, sentado atentamente no estribo do carro, “suando em bicas”, abanando-se com o “leque da própria mão”, olhar perdido na ponta da estrada, a espera de algum tropeiro que por ali passasse.
Foi longo o tempo de espera. Mas, ao final da tarde, quando o céu se encheu de vermelho, apontaram na longevidade do horizonte, vultos distorcidos pela distância, que por certo seriam, de tropeiros. Edgard abriu-se em alegria.
Não demorou muito para que pudesse identificar Mane Gamela, velho tropeiro, que há dois anos e meio tinha comprado do jovem Edgard uma mula chamada “Tinhosa”, cujo nome bem apropriado fazia justiça ao animal.
Na verdade, “Tinhosa” já tinha passado por vários donos, sem se adaptar a nenhum deles. Exceto ao Mane Gamela, claro, cuja afinidade entre ambos era patente.
Foi justamente aí desse ponto que chegamos aos finalmente.:
- Bons olhos o vejam Mane Gamela! Estava mesmo pensando em sua pessoa quando vi seu vulto apontar na linha da estrada!...
-Vou indo “assim assim Nho Digar”com as graças de Jesus Cristinho, com as mesmas churumelas de sempre... Mas que mal lhe pergunte... O que faz vosmicê parado aqui na estrada...? “Oxe”, por que sentado aí, no desconforto nesta coisa do demo?...
-É meu automóvel Mane Gamela...! Última moda da cidade grande!
- É mesmo Nho?!
- Em pouco tempo vai substituir as carroças todas Mane... Espere só pra ver!
-É mesmo Nho? Desconjuro!
-O carro é puxado por não sei quantos cavalos de força!
- É mesmo Nho? Mas cadê os cavalos?!
- Ficam dentro do carro Mane Gamela!... Mas, não me pergunte como eles foram parar aí dentro... Pois não saberia lhe explicar!
- Vosmicê está “mangando” d’eu?!
- Claro que não! Muito até pelo contrário... Estou querendo sua ajuda por demais!
- É mesmo Nho?!
- O carro ficou sem combustível que faz com que ele ande! Depois, eu não posso deixá-lo aqui na estrada mercê do tempo, sujeito as maldades do mundo... Não acha?!
- Se Nho esta dizendo... Quem sou eu pra desdizer?! Mas como posso ajudar vosmicê?
- Eu queria que você me alugasse por algum tempinho a “Tinhosa”pra que ela levasse meu automóvel até a fazenda do coronel Genuíno das Onças, que, como você sabe, fica logo ali algumas léguas adiante!
- Por mim tudo bem... Mas, como Nho deve saber “Tinhosa” tem vontade própria, e “dispois” já é do seu conhecimento que ela nunca simpatizou com vosmicê Nho Digar! “Dispois”, não foi esse justamente o motivo que Nho se desfez da mula?! Bicho tem sentimento... Não esquece fácil não!
- Foi em uma outra situação... Agora estou precisado, e conto com você, pessoa que ela tanto gosta pra fazer este convencimento!
- Eu posso até tentar Nho Digar, mas, não dou nenhuma garantia!
Assim foi feito:
Mane Gamela tirou os dois balaios de fruta de cima do dorso da “Tinhosa”, amarrando-a em seguida no “pára-choque” do carro, incentivando-a a puxar o mesmo. Mas “Tinhosa” olhava para o caixeiro viajante com relinches de enfurecimento, sem se mover si quer um centímetro do lugar. Parecia coisa de bicho pensante, querendo cobrar por algum malfeito que o Edgar, seu antigo dono, tinha cometido.
Não adiantava, grito, muxoxo, “beijo fingido”, qualquer comando que fosse... O bicho não arredava pé!
Foi aí perdendo a paciência, que Edgard apelou! Arrumou uns gravetos secos na beira da estrada, chamuscou-os com um restinho de gasolina, colocando-os em baixo da barriga da mula, e ateou fogo em seguida.
A mula sentindo a quentura na barriga andou meio metro, espaço suficiente para colocar o automóvel sobre o fogo que ardia.
Só deu tempo mesmo de Mane Gamela cortar as amarras que prendia “Tinhosa” ao carro com o seu facão. No mais, o fogo lambeu o automóvel inteirinho, para logo depois explodir!
- Bem que avisei Nho Digar... Bem que eu avisei!... Tinhosa além de tinhosa é vingativa!
Niterói, 01.04.013
Ronaldo Trigueiros Lima