O Pedro que não negou

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Carmelo da Ressurreição, meados da quaresma, 1979.

— Tu gosta dessa vida daqui, gosta? — sussurrou Irmã Mariana, que fora acolhida recentemente no Carmelo e criou afinidade imediata com Irmã Imaculada.

— E tem coisa melhor que isso aqui? — questionou Imaculada.

— Que tem, tem! Correr pra lá e pra cá, chutando a areia do sertão. Banhá no poço nos dias que chove. Chupar caju até a boca apertar. Que tem, tem!

— Eita que chupar caju é bom mesmo! Mas aqui também tem coisa boa.

— Que coisa?

Imaculada aquietou-se por alguns instantes, observando a expressão irônica na face da amiga e buscando resposta que convencesse a ambas.

— As orações... As refeições...

— Arre! Que da comida eu até que gosto.

— Mas, se não gosta de tudo, por que veio pra cá?

— Perdi Mainha e Painho bexiguentos, num sabe? Chorei muito e...

— Parem de cochichar! — ordenou Madre Leonarda, com veemente sotaque europeu — Entre nós, o sussurro é como o sibilar da serpente a nos atormentar.

Madre Leonarda foi quem recebeu Mariana no Carmelo e desde o primeiro contato, percebeu que havia algo misterioso naquela menina. Era como se profetizasse e, passados pouco mais de seis meses, depararam-se com inesperada surpresa...

A primeira negação

— Enclausurada e grávida? — questionou o Papa ao Camerlengo.

— Sim, e a Madre garante que a Irmã em questão jamais deixara o claustro ou recebera visitas quaisquer. Disse que descobriram próximo ao dia de Pentecostes e...

— Desejam que eu acredite que é obra do Espírito Santo? Ora! Como se este fosse o primeiro caso de freira grávida. Pois bem, verifique se há possibilidade de que algum homem tenha invadido o claustro — ordenou.

Pouco depois, o Camerlengo informou que havia um monge chamado Jonas que cuidava externamente do Carmelo, sendo o único que se aproximava da clausura.

— Pois arquive o caso e recomende à Madre que exclua ambos do ambiente do claustro, de forma que não sejam maus exemplos às demais Carmelitas.

Na semana seguinte, caminhavam Mariana e Jonas, unidos pela exclusão.

— Também te expulsaram, foi? — perguntou Mariana.

— Nem sei o que fiz — respondeu Jonas — E a menina, por que saiu?

— É que embuchei, num sabe? Também num sei que jeito. E pra onde tu vai?

— Pra qualquer lugar...

— E pode ir junto? Pode?

Jonas percebeu o desamparo da jovem grávida e, por sua índole cristã, nada questionou, apenas concordou com um menear de cabeça.

Caminharam por dias, acreditando que o faziam a esmo. Todavia, nos momentos de dificuldade, o instinto nos ruma às origens, como aves que tornam ao ninho depois de passado o êxtase do primeiro voo. Mariana nascera no agreste e era para lá que o inconsciente os levava. Passaram meses em peregrinação e, ao cruzarem o Velho Chico, Mariana sentiu as primeiras dores. As contrações intensificaram e Jonas se viu obrigado a acomodá-la à sombra de umbuzeiro que se destacava na sequidão do semiárido. E foi fincando as unhas nas raízes do pé de umbu que Mariana trouxe à luz Jesuíno, rebento de freira, concebido no claustro.

Condoído pelo choro, o sol nordestino amainou seu ardor e se esgueirou por dentre as folhas, desejoso por espiar a criança. Ambos pareceram sorrir quando o matreiro filete de luz finalmente alumiou a face de Jesuíno. O menino já não mais chorava quando se aproximou um boiadeiro negro, de perneira e guarda peito, atraído por urubus que por ali rondavam. Apiedou-se e os presenteou com pelego de lã para que aconchegassem a criança. Chegou, pouco depois, índio curandeiro que, tão logo fora avisado pelo boiadeiro, apressou-se em levar fumo de corda para que curassem o umbigo de Jesuíno. Logo o negro voltou acompanhado do dono das terras. Sujeito branco, português de bom coração, que trouxe água e panos limpos para que banhassem o menino, livrando-o do cheiro de sangue e dos carcarás.

— Sabemos quem são — disse o português, denotando que a história do monge e da freira peregrinos adiantara-se a eles — não posso abrigá-los, pois seria afronta de excomunhão. Mas há, no final deste trilho, rancho de pau a pique que poderá servi-los.

A segunda negação

Naquele rancho, embalado em rede, Jesuíno cresceu. Curioso, arrancou, com os dedinhos, muitos barbeiros por dentre as treliças do pau a pique. Quando dos primeiros passos, tropeçou por vezes nas próprias sandálias de couro e muito bateu cabeça nos caixõezinhos que o pai fazia, por encomenda do português, que os vendia na região para que enterrassem as inúmeras crianças, vítimas do descaso e da corrupção humana.

Tempos depois, o pároco local soube do paradeiro da freira enclausurada que dera à luz sob o umbuzeiro. Temeroso, endereçou carta à diocese e esta, à Cúria...

— Outra freira enclausurada que deu a luz? — questionou o Papa.

— Trata-se daquela mesma que fora expulsa do Carmelo, por sua ordem, há pouco mais de dois anos — respondeu o Camerlengo — Muita gente tem relacionado a história com a volta de Jesus e o Bispo não sabe o que fazer. A carência da região e as doenças que têm matado muitas crianças estimulam a crença do povo.

— Não serão as doenças um castigo divino por estarem acolhendo, conscientemente, a quem o Vaticano excomungou? Por que motivo apenas a tal criança não morreu? — insinuou o Supremo Líder romano, ordenando que assim respondesse.

Na semana seguinte, o boiadeiro negro aproximou-se do rancho, a galope, avisando que em breve seriam perseguidos e deveriam partir imediatamente. O instinto os rumou ao coração do agreste. Chegaram, meses depois, à terra natal de Mariana: São José do Egito, lugar onde nem a peste queria morar.

Passaram-se os anos e Jonas se tornara decadente ancião. Mariana, embora mais jovem, carregava as lavras que envelhecem as femininas faces semiáridas. Jesuíno? Um vigoroso rapaz cuja missão aos poucos se revelava.

Num dos anos em que a seca fora ainda mais cruel, já não se conseguia retirar água do poço que servia a região. O caminhão que abasteceria a caixa d’água comunitária não veio, pois não havia verba para o combustível. Desolados, os moradores oravam próximos ao poço, rogando por salvação. Dentre eles, Jonas, Mariana e Jesuíno.

— Tu não pode fazer nada, Zuíno? O povo tá com sede. — pediu Mariana.

— Joguem o balde de volta no poço — ordenou Jesuíno.

— Ôxente! Tuchei esse balde ai o dia todo e só saiu barro, num foi? — respondeu um dos moradores — Mas, já que tu quer, lá vai o balde.

Puxou a primeira vez, estava cheio de água limpa. A segunda... A terceira. Fartaram-se moradores e animais. Gritavam “milagre” e agradeciam a Jesuíno que pediu a todos para que agradecessem ao Pai e que exigissem dos governantes providências para que a miséria acabasse; discurso que ecoou agreste afora e fez enxergar milhares de cegos.

A terceira negação

— Careço partir, Mainha. Sair do deserto... Lançar rede em outro mar.

E partiu, observando da carroceria do caminhão os espinhos dos mandacarus que logo se transformaram em lanças de metal a cercarem os prédios paulistanos. Andou pelas ruas da metrópole, partilhando as vestes com crianças seminuas que tremiam sobre o cimento das escadarias da Sé. Esbravejou e tomou o pão que não era seu, multiplicando-o em migalhas que eram banquete para a fome voraz dos viciados. Conviveu com a miséria, converteu e operou milagres que trouxeram pastores com generosas ofertas, para que fosse promover seções de cura em seus salões. Milagres que também incomodaram arcebispos e cardeais, que acionaram novamente o Vaticano:

— Trata-se de um jovem, filho de uma freira que vivia no claustro e que fora expulsa do Carmelo, há muito tempo, pelo Vaticano. — explicou o Camerlengo.

— Já anunciei minha renúncia, meu caro, e o que menos quero são problemas com falsos profetas — argumentou o Papa — Nada manifestarei e que o próximo Papa, o último, segundo a lista de São Malaquias, resolva o caso, se achar pertinente.

Negado pela própria Igreja, que sequer designou advogado do diabo para investigar a veracidade dos milagres, Jesuíno ficou a mercê da sociedade, sendo preso por perturbação da ordem. Na prisão, zombaram-no, nele cuspiram, dele abusaram. Os de fora, apenas o ignoraram, como também o fazem com o Cristo que veio há 2.000 anos, crucificando-o dia a dia na cruz do descaso.

O Juízo Final

Na sexta feira que antecedia à Páscoa do ano de 2013, havia grande tensão no Vaticano. O Papa Pedro II dividia suas preocupações entre a crescente onda de escândalos religiosos e os constantes conflitos políticos entre as nações. A fragilidade do Papa enfraquecia o poder diplomático do Vaticano que, naquela situação, não tinha supremacia suficiente para impedir nenhum conflito bélico.

— Somente o próprio Jesus, se aqui estivesse, teria poder para impedir a guerra — Murmurou Pedro II, desolado. — Tragam o filho da freira, talvez seja mesmo Jesus.

Naquele mesmo dia, sentindo-se ignorado pela Igreja e pelo povo, Jesuíno ajoelhou-se entre outros dois detentos e, erguendo os olhos ao céu, exclamou:

— Pai, não há milagre que transforme tanta água suja! Entendo porque os abandonaste e não rogarei para que os afaste do cálice. Que seja feita a Tua vontade.

No mesmo instante, um rastro de luz cortou o céu, como a rasgar um manto que separava o mundo terreno do Paraíso. Em poucos segundos, vários outros rastros surgiram, despencando sobre a Terra torrencial e devastadora chuva de fogo...

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 25/04/2013
Reeditado em 25/04/2013
Código do texto: T4259424
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