O pontificado de um papa brasileiro
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Instalou-se nova crise mundial. A tensão de 1929 parece fichinha, brincadeira de criança, se comparada à crise ética e de valores morais que assolam a humanidade. Agora, Vossa Santidade e o Vaticano estão se tornando ilhas ao defenderem uma igreja remanescente, rotineiramente destoante em relação aos anseios de uma sociedade dinâmica, liberal e laica.
Para agravar a situação, no auge da discussão em torno do retorno da primitiva Igreja de Deus, pura e imaculada, o líder da Igreja Católica decide morrer, repentinamente, de ataque cardíaco. A vacância exige que se forme novo conclave. A ritualística movimenta a imprensa, aquece o comércio religioso local e mundial, mas nada de fumaça branca; atentos, fiéis do mundo inteiro esperam a proclamação do novo Papa. E o inusitado acontece: pela primeira vez, depois de longos Séculos de existência, o papa será brasileiro e nordestino, do interior do Ceará.
Francisco Severino Arruda da Silva – o Chiquinho de D. Quequé – quem diria, seria, depois da posse, o Papa São Sisto V. O menino do buchão, nascido e criado nos torrões do sertão, que andava descalço no chão quente; o adolescente de cabelos crespos, lavados com sabão de coco, ainda com o buchão – fruto de inúmeras lombrigas... Seria o papa!
Com as orientações elencadas na Encíclica Novarum Novarum, Severino se tornaria mundialmente conhecido como Sisto V, o arretado!
Logo na introdução da Encíclica, o abençoado Sumo Sacerdote, preocupado com a economia familiar, entendida como berço das civilizações, estimula a produção de rapadura como fonte de saúde cristã. “Rapadura é doce, mas não é mole!” – Costumava falar nas homilias, fazendo questão de discursar em latim. No tópico 2, alvoroçando os religiosos, cria a disciplina de Literatura Nordestina e Nordestinês de A até Z – a inovação, inserida na grade curricular no segundo ano do seminário, tornava obrigatório o entendimento de expressões como ‘Diabeisso[1]’, ‘Avia, homi![2]’, ‘Se avexe não[3]’, ‘É pai d’égua![4]’... Os pesquisadores deveriam, ao reeditar o Livro Santo, incluir nas Escrituras termos em Nordestinês, universalizando o entendimento da palavra junto ao povo de Deus. Com as alterações, o trecho ‘Deus é fiel e sem iniquidade; justo e reto é ele’ foi modificado para ‘Deus é arretado e é pai d’égua’. O trecho ‘Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo’, tornou-se: ‘Então foi acunhado Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser atanazado’... As modificações foram inúmeras e as interpretações suscitaram diversos conflitos. Nos corredores do Vaticano, um dos serviçais comenta com um irmão, durante a vigília:
– Diabeisso! O Papa está bestando, ficando abestado! Fica aperriando a gente para estudar esse dialeto...
– Pior que o homem é novo e vai demorar pra bater a caçuleta[5]! Esse batoré quer revolucionar. Veio das brenhas e agora quer dar ordens aqui!
– Mas ele é o papa – comenta o primeiro interlocutor, fazendo o sinal da cruz por três vezes.
– Avia, homi! Vamos sair daqui.
– Se avexe não, que já estou indo...
O papa acordou meio borocoxô[6]. Apertou o biloto[7] da TV e, espantado, assistiu a uma missa, celebrada nos Estados Unidos. Razão do espanto? O religioso, ao cumprimentar os fiéis, na hora da homilia, proclama:
– Deus, irmãos, nunca capou o gato[8]. Apesar das cruzetas[9] dos homens, ele sempre está conosco...
O espanto foi de emoção – a Igreja era, realmente, fiel aos ditamos do seu pastor. E o encardido[10], claro, esse fulerage[11] era quem perdia força com isso.
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[1] Diabeisso! = Que diabo é isso!
[2] Avia, homi! = Apresse-se!, Vai logo!
[3] Se avexe não! = Não se apresse! Tenha calma!
[4] É pai d’égua! = É legal! É bacana!
[5] Bater a caçuleta = Morrer
[6] Borocoxô = Triste, desanimado
[7] Biloto = Botão
[8] Capou o gato = Sumiu, desapareceu
[9] Cruzetas = Armações
[10] Encardido = Diabo, demônio
[11] Fulerage = Coisa sem valor (Possível galicismo)