Respeito
Ao contrário do que muita gente pensa, os homens que viviam no campo, mesmo nos recantos mais distantes da civilização urbana, sempre foram muito vaidosos. Não a vaidade baseada no consumo ou os padrões de beleza que vemos nas comunidades cuja mídia dita as maneiras de vestir e andar, mas uma vaidade relacionada ao meio em que o homem estava inserido e as ferramentas que facilitavam a interação com este meio.
Era vaidade temperada com orgulho. Era a faca que cortava mais, um artefato de couro bem acabado, o cavalo mais rápido, a arma de melhor pontaria, um enxame de abelhas que deu mais mel, o maior peixe pescado em uma pescaria ou outras coisas que para nós hoje não tem significado algum, mas que nos tempos do vô Cungo tinham uma importância cabal.
Sempre via os olhos do avô brilharem quando contava a respeito daquilo que lhe dava orgulho, que o deixava maior ou melhor diante dos amigos ou das comunidades onde estava. Dentre estes “mimos” houve muitos cachorros. Bons de caça ou para a lida com o gado, era com uma alegria de guri que contava de casos onde um cachorro afundava no rio agarrado a um capincho e só voltava à tona junto com o bicho. Quantos cães ele teve que valiam mais que uma pessoa no trabalho com a pecuária, ou então que eram apenas bons companheiros para camperear ou para tomar mate no galpão. Dentre tantos animais fantásticos, tinha um que lhe embaçava os olhos sempre que contava suas proezas. O nome do cão: Respeito.
Respeito foi um dos cachorros que mais tempo acompanhou o vô Cungo. Era tão bom que outras pessoas que viviam no interior de Alegrete costumavam mandar seus cães para ficar alguns dias com ele e aprender a caçar ou lidar com o gado com a mesma eficiência e maestria. Caçava tatus e capinchos como nenhum outro cachorro nas redondezas. Brigava com um “mão-pelada” de igual para igual e, por mais de uma vez, alertou o vô a respeito de cobras venenosas que estavam pelo caminho ou em volta da casa.
Na lida campeira agia tal qual um peão experiente. Na mangueira apartava o gado apenas com comando de voz. Tropeando, não precisava nem mandar quando uma rês se desgarrava, tratava logo de trazê-la de volta à tropa.
Parceiro de todas as horas, jamais latira para criança nenhuma, muito pelo contrário, era bastante paciente com a gurizada. Costumava deitar em silêncio durante a hora do chimarrão, e à noite era um sentinela vigilante, sempre atento a movimentos estranhos ou ataques dos sorros, os quais já havia matado três que vieram roubar galinhas durante a madrugada.
Resumindo, podia-se dizer que Respeito era a personificação da lealdade de um cão com seu dono.
No entanto, quem vive no campo sabe que convivência entre homens e animais é delimitada por uma tênue linha, que muitas vezes pode se partir sob a menor tensão. Os animais campeiros são funcionais, sejam cavalos, bois ou cachorros. A submissão é necessária, pois muitas vezes há necessidade de algo que vá além da confiança, pois a produtividade do pequeno produtor é essencialmente de subsistência, e qualquer quebra da ordem natural pode representar prejuízo à família. A relação homem/bicho jamais se sobrepõe ao interesse da estabilidade familiar. Existem casos extremos de histórias de pessoas que tiveram que sacrificar animais de estima para que seus entes pudessem se alimentar, ou então que mataram animais de casa porque estes estavam representando algum risco à integridade das pessoas próximas.
A história do cão chamado de Respeito não termina da forma mais bela, e aqui talvez não caiba julgamento sobre o que seria certo ou errado em seu desenlace, mas uma reflexão a respeito do rígido código de moral e ética que compunha a formação destes homens, mulheres e crianças que viviam em um universo completamente alheio ao que vivemos hoje em dia.
Continuando a história, é de conhecimento de todos que no interior as pessoas têm o costume de “sestear” à tarde, logo após o almoço. Hábito esse que faz parte da cultura destas pessoas desde que existe campo. Visto que depois da sesteada daquele dia o vô Cungo não enxergou o Respeito nas proximidades da casa, logo pairou uma desconfiança no velho campeiro. Nos quatro dias seguintes o fato se repetiu; durante a sesta o Respeito desaparecia, e voltava horas depois. Chegava de cabeça baixa, com o rabo entre as pernas, se enfurnava no galpão e lá ficava como que se escondendo após ter cometido um erro imperdoável.
Vô Cungo não teve dúvida, e naquela sexta-feira chuvisquenta de agosto ficou observando de longe seu cachorro, e seguiu-o discretamente para ver qual o destino de suas fugas diárias. Viu-o entrar em uma grota que ficava há uma centena de metros da casa e mansamente enfurnou-se naquele pequeno universo formado por sombras e verdes. Os olhos do Cungo encheram-se de horror quando viu a cena: embaixo de uma aroeira, Respeito estava envolto em um cenário de sangue, lã e restos de cordeiros recém mortos.
Não há outro destino para cachorro que “corre” ovelhas. A lei do campo é incisiva e cruel: morte. Cungo sacou o revólver (todo campeiro que se preze carregava uma arma consigo) e, não sem antes chamá-lo pelo nome uma última vez, fez fogo duas vezes, silenciando definitivamente aquele que muitas vezes latira em defesa de seu dono. Anos depois da vez em que ouvi esta história, pensei que o fato de tê-lo chamado pelo nome antes de atirar foi uma forma de encará-lo de frente, de não aplicar a pena capital pelas costas, uma forma leal de aplicar a lei do campo.
Não lembro ter ouvido esta história mais de uma vez, mas lembro de que esta foi a única vez que vi meu avô chorar.