Tinha um Piá
O interior do Rio Grande do Sul é formado por gigantescas áreas rurais que circundam pequenos (está certo, alguns não tão pequenos) centros urbanos. Este mar verde é dividido em propriedades, algumas menores, outras que aparentam não ter fim. Em todas elas, sem exceção, há pelo menos um piá. Esta história é sobre um destes piás.
O pequeno Januário vivia na volta das casas ajudando na lida. Dava “bóia” pras galinhas, buscava lenha pro fogão. Voava a cavalo quando um chasque urgente precisava levar.
Nos raros momentos que se permitia brincar, principalmente na hora da sesta dos “grandes”, virava adulto também: tropeava e parava rodeio com gado de osso, marcava, castrava e curava. Domava cavalos imaginários – as varas da mangueira viraram tropilhas inteiras, todas amansadas a laço por seu rebenque de meia.
Na campanha a rotina de um menino inclui responsabilidades tão sérias quanto aquelas dos adultos. Buscar as vacas de leite pra embretar na mangueira era o primeiro ofício do dia do pequeno Januário. Cedo mesmo, porque enquanto a peonada ia acordando para tomar o primeiro mate, alguém da cozinha já ia de balde em punho em direção à mangueira, para o compromisso da ordenha.
Quando entrava no galpão, a roda de mate já estava formada. Olhos e ouvidos atentos. O capataz ia falando das coisas a fazer naquele dia. Os olhos do piá fixos na cuia que passava de mão em mão. Quando chegava a sua vez, a cuia passava ao largo. A peonada olhava pra ele de mãozinhas estendidas. Davam risadas amigas, passavam a mão na sua cabeça e diziam que quando ele fosse "mais grande" tomaria mate junto com os gaúchos. Aquilo se repetia todos os dias.
Depois que a peonada encilhava seus cavalos e saía para a lida campeira, ele pegava a cuia com a erva lavada, a água morna e servia um mate escondido. Depois do café pegava o petiço e se tocava a trote para o colégio rural. Em seu pequeno coração a esperança de que o próximo dia seria diferente. Que suas mãos pequeninas ganhariam a cuia, e aqueles velhos gaúchos, que tanto admirava, o veriam como igual.
Por que tinha que esperar?
Não lidava na mangueira tal e qual os gaúchos?
Levantava tão cedo quanto os peões e não refugava serviço.
Dava comida pros bichos, ajudava no banho das ovelhas, descascava "pêsco" pra fazer passa...
Então por que não podia matear?
Em uma noite fria de julho, o piá não conseguiu dormir. Deitado em sua cama com os olhos abertos, repetia as perguntas e não achava respostas. Sabia que não era “grande”, mas era tão gaúcho quanto os demais.
Madrugada alta! O frio do inverno parecia que encarangava até a chama da lamparina de querosene.
Januário levanta, se enrola num poncho velho e, passos miúdos, vai direito a invernada onde as vacas passavam a noite. Elas se assustam, acostumadas a serem tocadas mais tarde, mas logo baixam a cabeça e se vão rumo à mangueira. Os pés do piá, quebrando a geada, pisavam firmes como se quisessem esquecer o frio e aquecer o medo. Medo de ser pego "fazendo arte". Ao longe, um urutau cantava sua cantiga triste.
Depois, pé-ante-pé entra no galpão. Sorri ao ouvir os roncos da peonada que dorme no alojamento.
Onde até pouco tempo havia um fogo de chão, agora apenas cinzas e um pai-de-fogo sem qualquer sinal de calor. Calmamente encosta palha de milho e gravetos. Sabia como principiar um fogo, pois já fizera isso várias vezes em sonho.
Um pau de lenha... outro pau de lenha...
Onde estão os fósforos? Dentro de uma gamela quebrada, junto de palha e fumo em corda...
As mãozinhas tremendo, os dedos arroxeados de frio.
“Acende palha! O frio não deixa... agora vai... ACENDEU!”
Na tina de barro enche a cambona com água... Água gelada, parece que corta!
O fogo começa a aquecer o galpão. O coração do piá se aquece também...
A cuia, a erva tombando, a água esperta.
“Incha logo erva!” Até a água sumir, parece que passaram horas...
Agora só falta a bomba, tapando o bocal...
“Pronto!”
A água na cambona começa a chiar e a mãozinha pequena, no cabo de arame, nem sente que queima!
Enche bem a cuia, igualzinho aos peões...
Lá fora os galos começam a cantar, anunciando mais um dia de inverno. Dos olhos do piá, rolam lágrimas quentes. Como quente é o mate que ele sorve com gosto. O salgado da lágrima e o amargo do mate.
A doce revelação: “EU JÁ SOU UM GAÚCHO!” E aquele é o melhor mate que as mãos de um gaúcho já fizeram no mundo...
Quando a peonada da estância começa a se movimentar - caras amassadas em direção ao galpão - encontram o piá mateando solito, em silêncio. Os olhos molhados, olhando pro fogo.
Nenhum disse nada. Não ousaram falar.
Nenhuma risada, nem mãos acariciando os cabelos revoltos.
Sentaram na volta e aceitaram o mate que o piá alcançou. As mãos pequenas do pequeno homenzinho passavam a cuia. Entre aqueles peões rudes, de caras surradas e sérias, uma certeza:
Ali não mais um piá, mas um GAÚCHO afinal.