O INCONDIZÍVEL CARGA D'ÁGUA

Esta aconteceu há uns quinze dias, na praça da República, no Centro da cidadezinha de Dom Eliseu, no Pará. Um professor e um vereador da cidade ofendiam-se com muita intensidade, estavam "aos fios da barba", quase ao ponto de "amarrarem as camisas", quando repararam que uma grande multidão de curiosos os rodeava, todos em busca de conhecerem a razão do atrito e poderem palpitar contra um ou contra o outro (talvez até contra os dois).

Naquele instante calaram-se vereador e professor e olhando ambos para a plateia sentiram que algumas palavras esclarecedoras deveriam ser ditas, antes que a fértil criatividade dos populares preenchesse as lacunas deixadas em seus imaginários com suposições de todos os gêneros.

Neste ponto adiantou-se o professor, dirigindo-se à multidão:

"Amigos, tendo como justa a admiração que vocês demonstram diante das descortesias proferidas por mim e pelo vereador Carga-d'água, gostaria de tornar notório o motivo de nossa contenda. Combatíamos sobre qual de nossas profissões seria mais importante para o progresso e bem-estar do povo dom-eliseuense.

Evidentemente pessoas como nós acostumadas aos debates de temas bem mais polêmicos não deveriam chegar a tamanho destempero sobre tal assunto, contudo este vereador, por ignorar até mesmo a importância de suas funções para com a sociedade, passou a desmerecer o meu ofício, o que gerou nossa discussão mais acalorada."

Os populares, considerando a explicação bastante justificada para gerar boatos, torciam por mais uma ofensa que reacendesse a chama quase extinta do conflito, pelo que não tardou que alguém gritasse:

- E qual é a função mais importante? Tal pergunta foi de prontidão aprovada pela turba com sorrisos, tímidos aplausos e gestos positivos, de maneira que o professor viu-se obrigado a posicionar-se em relação a questão de forma mais contundente, ao que principiou:

"Certo dia, uma pequena cidade viu-se sem vereadores pelo estranho motivo de que ninguém desejou concorrer ao cargo, nem mesmo os que o haviam exercido no mandato anterior.

Nos primeiros meses ninguém deu por falta dos vereadores, nem mesmo os funcionários da Câmara, tão pouco acostumados a vê-los em atuação. Houve até quem dissesse que percebeu uma melhora na cidade, pois 'no mandato passado o legislativo por esta época já havia aprovado muita lei desagradável a população' conforme explicou um cidadão.

Entretanto era necessário que orçamentos, projetos, relatórios e demais documentos fossem aprovados para que a cidade continuasse sua rotina. Foi então que alguns cidadãos resolveram tomar para si esta obrigação e, respaldados por abaixo-assinados colhidos dentre a população da cidade, passaram a legislar na casa de leis.

Com receio de desagradarem uns ou prejudicarem outros, passaram a convocar o povo para as assembleias e decidirem por votação da maioria cada projeto da casa. Dois anos após o ocorrido, cada cidadão já estava familiarizado com o processo e tornara-se o seu próprio legislador advogando nas assembleias em causa própria ou de sua classe.

Assim determinou-se entre eles que daquele dia em diante jamais elegeriam alguém para representá-los na Câmara,pois consideravam-se cada um a pessoa que melhor poderia representar e lutar pelo seus interesses."

O vereador Carga D'água notou que aquelas palavras não apenas deixariam em dúvida o valor de sua função, como poderia suscitar pensamentos indesejáveis na população, portanto tratou logo de improvisar uma defesa:

"Meu povo, também aconteceu de em uma cidadezinha não haver professor algum que ensinasse, portanto não havia despesas com escolas, merendas, salários, transporte, enfim, com nada que se referisse a educação, economizando muito dinheiro aos cofres públicos"

Após um minuto de silêncio, um popular gritou:

- E como ficou o povo sem o estudo?

O vereador pego de surpresa, respondeu nestes termos:

" Sem precisarem gastar seu tempo estudando e não havendo emprego para todos, muitos se candidataram para o cargo de vereador." e deu um largo sorriso segurando seu suspensório com os polegares a espera da aclamação popular.

Saulo Palemor
Enviado por Saulo Palemor em 17/04/2013
Reeditado em 25/05/2020
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