Tempos de Março¹
Cinco horas da manhã, o galo já cantou no subúrbio pobre, é hora de levantar-se. Aos que aqui vivem, passar das sete na cama é um luxo dominical. Estender este luxo aos dias da semana é, decididamente, abrir mão de comer.
Renato, como não abre mão comer, ao primeiro canto do galo põe-se em pé. Orgulha-se de nunca ter chego atrasado ao trabalho, está sempre adiantado para o mesmo.
Leva, é bem verdade, uma vida distinta daquela que sonhou outrora. Ocorre-lhe, de vez em quando, que o destino fora extremamente impiedoso para com ele, porém, tais pensamentos, rapidamente são superados, pois sabe que a fome está a espreitar a sua porta, não a tempo para lamentações, é preciso comer.
Todos os dias, antes de partir para o trabalho, motivado por um amor paterno pouco comum, deita sobre o filho, órfão de mãe, uma infinidade de afagos. O pequeno, na maioria das vezes, nem sente a presença do pai, mas como o mês de março não tarda a chegar, pensa ele, é tempo de ficar esperto:
- Pai, sobrará algum este ano para o meu presente de aniversário?
- Veremos, Veremos... Agora volte a dormir, logo mais você vai à escola!
Há algum tempo que o pequeno deseja ganhar uma bola de futebol, não a ganha não por sovinagem do pai,e sim porque o dinheiro é escasso, primeiro as prioridades. Mas, neste ano, pensou o pai, um esforço terá que ser feito para poder agradar o filho. Em Os Miseráveis, Victor Hugo nos diz que privar uma menina de uma boneca é o mesmo que privá-la da infância. Com os meninos a bola ocupa este papel, tire-a deles, e estarás surrupiando-lhes a infância.
Renato passou longe dos bancos escolares, de modo que só lhe restou então o trabalho braçal como forma de ganhar a vida. Vende a força de seus braços em um canteiro de obras no movimentado centro da cidade. Lá, entre os companheiros de trabalho, é bem quisto, porém não escapou de receber uma alcunha dos mesmos, é conhecido como o "unha de fome". Até certo ponto tal apelido se justifica, pois é sabido que entre àqueles em que a prioridade é comer, não se pode haver prodigalidades. Entretanto, há algumas semanas, evidenciou-se entre seus companheiros que sua suposta avareza alcançou maiores proporções, visto que deixou de contribuir, coisa que fazia há algumas semanas atrás, na "vaquinha" para o refrigerante da tarde. As admoestações chegam: " Homem, deixe de ser avarento, abra essa mão seu sovina", "Como você pode ser tão avaro, homem? Valha-me deus"... Resignadamente, aceita-as, não há motivo para respostas, pensa.
...
É tempos de março, mês importante. Renato, como de costume, põe-se de pé ao primeiro cantar do galo. É dia de pagamento, outro fator que motiva-lhe o dia. Dados os afagos no filho, é hora de partir ao trabalho.
Surpreendentemente, a pontualidade de outrora, hoje, não repetiu-se. Chegou uma hora atrasado, fato que motivou uma austera repreenda do chefe, porém, coisa pouca, pensou. Um sorriso tímido, contido, em seu rosto é passível de ser notado, seus companheiros brincam: "Acho que o Renato viu o passarinho verde na noite passada" ao que ele responde: " Que nada, estou feliz, pois, é tempos de março". A "vaquinha" para o refrigerante da tarde, vejam vocês, hoje, por Renato, foi dispensada. Comprometeu-se a pagar o refresco dos companheiros, coisa que lhes surpreendem.
Entretanto, o que, aparentemente, parece ser apenas mais um dia de trabalho à Renato eu seus companheiros, acabará por torna-se um dia infeliz, trágico é bem verdade. Do alto do prédio, mais precisamente de um andaime inseguro, eis que despencou o pobre homem. A altura da queda não permitiu-lhe chances de vida, aquele que era órfão de mãe, tornara-se agora órfão de pai também. Atônitos, cercaram-lhe o corpo os companheiros, atentos a ver se ainda restava-lhe uma sobrevida, coisa que não aconteceu. Um deles, mais precisamente o Mário, eis que encontrou ao lado do jazido uma quantia em dinheiro junto a um cartão que, exatamente, trazia os seguintes dizeres:
" Loja de Esportes...
Bola Ni... oficial, $ 150, 00 "
Rafael Oliveira, Florianópolis 2012.
¹ Inspirado no conto " O Cavaquinho", de Miguel Torga.