AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ...*
O toque do telefone em horário imprevisto, altas horas, tinha tudo para ser coisa séria e urgente, demandando preocupações. Sonolento, tateando em busca do óculos, parecendo ainda dormir, por fim atendeu. Mil hipóteses ocorrem nestas interrupções em horas descabidas, todas prenunciando tragédias e assustando quem as recebe, com ele não foi diferente.
-Quem está falando...O que é ? Aconteceu alguma coisa, que horas são ?
Mal ouviu a voz sôfrega do outro lado, impertinente e mal humorado
(odiava ter o sono interrompido), desligou em seguida, dando pouca ou nenhuma atenção ao interlocutor eufórico. Lembra-se de ter despachado o inconveniente com frases balbuciadas, por pouco não perdendo a paciência, batendo o telefone. Se fosse do seu feitio o mandaria para aquele lugar, não sabe nem porque se conteve, razões tinha, e de sobra.
Virou-se de lado, buscando retornar ao sono, que já não vinha, intercalando sonolência inconsciente com o despertar, teria sonhado?
Alencar era um colega de serviço, alguém que não fazia diferença alguma, mas, por serem trabalhadores da mesma empresa, utilizando-se o uniforme padrão, ainda que em departamentos diferentes, acabaram por estabelecer um contato eventual, nada de muito sério, a princípio. Numa conversa ocasional em um bar, arrependendo-se de ter dado trelas aos murmúrios do infeliz, selaram compulsoriamente a amizade, deixando de serem apenas conhecidos, ao falar de si mesmo estreitava os laços, a confidência é própria de amigos. Começava a sua tortura, de natureza reservada não era dado a se expor com ninguém, também não entendeu porque aquele homem se sentiu tão à vontade para relatar todo o seu drama pessoal. Era um mala, a bem da verdade, apenas uma tolerância fraterna para lhe dar alguma atenção. Vivia deprimido, a mulher o abandonara levando o casal de filhos, em poucas linhas de um bilhete dava passe livre ao marido, acusando-o de intolerável, entre outros adjetivos pouco recomendáveis. Era a sinopse de mais um casamento esgarçado na poeira da convivência num histórico intramuros da intimidade de um casal. Ele dizia não saber o porquê daquilo, deduzia que era pelo pouco rendimento dele, único provedor da casa, e a questão financeira, sempre ela, a atormentá-los. A esposa esconjurada o lembrava diuturnamente que os recursos eram escassos, havia sempre necessidades extras, aquilo o aniquilava, sentindo-se impotente para reverter os fatos e ter um ganho satisfatório. As conversas entre os dois dava-se no compartilhamento de algumas cervejas, conta dividida, ambos solitários, isso quando não houvesse algo melhor a fazer, momentos em que mudava de rumo e de bar, esquivando-se sempre que possível do acompanhante de conversa de uma nota só. Problemas? Já tinha os dele e não enchia os ouvidos de ninguém. Arrependera-se de ter dado o número do telefone, aliás, nem se lembrava disso, como será que ele soube? Alguém invadiu a sua privacidade e o entregou, imagine, não bastasse aturá-lo vez ou outra, e agora receber uma ligação imprópria àquelas horas ! Deve ter tido uma crise, será que cometeria alguma sandice? Debalde o estado emocional parecia ter equilíbrio, exceto quando o usava como confessor para desafogar as mágoas, ai era um Deus nos acuda nas lamentações intermináveis. Não se sentiria culpado, era maior de idade e responsável por suas atitudes. Apesar de estar sempre triste, parecia empolgado na ligação, rindo e cantando, entusiasmado. Talvez efeitos de alguma medicação antidepressiva para liberá-lo do marasmo e da tristeza. Bastou perceber a voz inconfundível, nem bem o ouviu, e desligou. Felizmente não houve insistência, não tornou a ligar, como comumente fazia ao persegui-lo pelas ruas nos seus passos, buscando sua companhia. Passou o resto da noite semi acordado, praguejando pela insônia inusitada. Assim que o encontrasse tiraria satisfações, o chamaria à razão, findaria por vez aquele relacionamento, não era confessionário para ouvir lamúrias inesgotáveis, recomendaria a ajuda de um profissional, psicólogo ou um psiquiatra, o convênio médico da empresa oferecia esses serviços. Vê-lo e evitá-lo já estava se tornando uma rotina chata, sentia-se constrangido, afinal, apesar de tudo, penalizava-se pela situação dele, a reclamar saudades da esposa e dos filhos. As noites dele deveriam ser tediosas , ao retornar ao lar e ver-se só. Como nunca se casara não poderia sentir falta de ninguém a esperá-lo, mas, quanto a ele... Merda, o infeliz, mesmo a distância, continuava ocupando sua mente, pior, fazendo-o sentir-se responsável, tirando-lhe o melhor do sono, no amanhecer estaria um trapo, sem concentração para o trabalho. Nas conversas, verdadeiros monólogos exaustivos onde fingia estar atento, ouvia sempre o reprise do filme de sua vida, as lágrimas saudosas dos seus parentes, o lastimar do pouco dinheiro, segundo ele o fator provável da separação da mulher, rememorando passagens felizes, sorvendo em soluços disfarçados, aos goles pausados, a bebida que compartilhavam. A condição financeira era fundamental, repetia ele, restando ao parceiro apenas o concordar com a cabeça. Se tivesse recursos seria feliz, com certeza, não havia maiores problemas domésticos, julgava amar e ser amado pelos seus. Momentos em que olhava para ele e afirmava convicto, eu te ajudaria também se conseguisse ganhar alguma fortuna, reconhecendo nele o seu único amigo, agradecendo-lhe em olhares e gestos de apertos de mãos a solidariedade. Fazer o quê? Apenas emprestar por momentos a sua presença, mesmo distante, pensando em outras coisas, para vê-lo menos infeliz. Sabia que tomando alguns goles ele ficaria relaxado e dormiria melhor, não se angustiaria tanto nas saudades cruciantes. Raros instantes a sentir-se menos egoísta e mais solidário com alguém, embora reclamasse com seus botões pelo sacrifício indesejável. O tempo tudo cura, filosofava consigo mesmo, haveria também de ajudá-lo, bastando ter paciência para purgar aquela dor, chaga ainda viva, exposta. Neste intervalo, parecia já abnegado, estaria presente ( sempre que não desse para escapar) para ouvir o martírio do outro.
Apenas uma ducha rápida e um café preto para reanimá-lo para um novo dia, afastando o cansaço da noite interrompida. Tinha que enfrentar a situação, falaria com ele de forma definitiva, não poderia tolerar mais incômodos como o vivido naquela madrugada, seu rendimento profissional estaria prejudicado pela falta de concentração que a ausência do descanso ocasiona. Jamais permitiria que alguém ligasse no meio da noite, sinal de más notícias, levando a paz de quem atende. Tentaria não ser duro em demasia, apesar do nervosismo, relevando as dores já suportadas pelo companheiro. Contudo, seria claro e objetivo, não toleraria atrevimentos tais, não bastasse a perseguição diária para acompanhá-lo nas saídas do trabalho, sendo cada vez mais difíceis as escapulidas incólumes da presença indesejada, agora via telefone, superava tudo, excedera os limites do abuso e da sua tolerância.
Curiosamente, objetivando oportunidade para vê-lo e expor seus argumentos, procurou não evitá-lo, freqüentando no fim do expediente o mesmo bar, não o encontrou, nem foi encontrado por ele, que era o mais comum. Chegou a pensar que poderia ter acontecido alguma coisa, aquele telefonema naquele horário, a voz dele alterada e efusiva, será que teria cometido alguma loucura? Esperaria por notícias, coisa ruim é instantânea, todos comentam. Poderia ser que estivesse melindrado, envergonhado pela ousadia de incomodá-lo daquela maneira, deixando de procurá-lo. Ficou por ali algum tempo, bebericando devagar a sua cerveja, dando espaços para algum comentário, e nada. Tudo corria sem novidades, para alívio seu. Caso tivesse acontecido alguma coisa com o amigo não se perdoaria, fora ríspido com ele, talvez bastasse uma palavra amiga para se evitar uma tragédia, arrepiava-se preocupado. Não era religioso, o que não o impedia de ter remorsos. Lavara as mãos como Pilatos com Cristo, aquilo o aterrorizava, lembrando-se das lições de catecismo. Negar-se a dar um apoio, conforto de algum gesto de fraternidade era um ato que castigava seus princípios, temia pelo sucedido, aflito de apreensões por sua atitude desumana e egoísta. Doía a cabeça, resultado de uma cefaléia do descanso interrompido, além da consciência pesada. Deixara a garrafa sem terminar de beber, coisa rara.
Desatento, seguiu o seu caminho normal, sem desvios como fazia para despistá-lo, passando em frente à casa lotérica do bairro onde uma faixa anunciava o prêmio milionário conquistado por um freguês da casa, pensando com seus botões na sorte do contemplado, ganhador único da mega sena, uma verdadeira fortuna para não ter mais com que se preocupar.
Dias depois, já convencido de que o amigo se tocara da mancada de persegui-lo, pois nunca mais se viram, recebeu, via departamento de recursos humanos da empresa, um cartão postal do Alencar.
Na foto, tirada de um desses lugares paradisíacos , que bem poderia ser no Caribe, uma pose de uma família feliz e sorridente, Ele junto com a esposa e os dois filhos...
“- Caro amigo, tentei te avisar, consegui a duras penas o seu número de telefone, mas reconheço que abusei de sua amizade o incomodando tanto...Como dizia, não tenho problemas familiares, apenas a falta de dinheiro, que, graças a Deus, já não me preocupa.
Saudações do Alencar.”
* Conto publicado em livro na Antologia Contos de Verão, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ, com lançamento em abril de 2014.