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ALÉM DA DOR E DO SENTIMENTO HUMANOS
Finda a tarde o sol descambava baixo. Na Maranhão, ouvia-se o tropel apressado da manada tangida ao som dos aboios tropeiros; os animais troteavam ligeiros se deslocando enfileirados até se amontoarem na virada da Jaraguá, encruzilhada fatal de onde não tinha volta. À frente, avistava-se o Abatedouro Municipal, o velho Matadouro, assim como o conhecíamos. Num dos seus lados externos expondo o fundo da velha instalação, --- após passar os currais de depósito do gado, --- crescia vigorosa vegetação rica em carirús de porcos, juás e fedegosos, à margem dos descartes das reses abatidas. Quadro terrivelmente dantesco! Em meio a sangue, fezes e pedaços de órgãos, jaziam também carcaças de bezerros de pelagem desenvolvida (prestes a nascerem, alguns envoltos na proteção da placenta violada), traziam nos olhos vidrados o terror do pânico ali estampado pela ação desumana e cruel dos homens na prática do morticínio das matrizes onde estavam. Ali, urubus pacientes aguardavam que os donos de cachorros destrinchassem as vítimas nati mortas para, finalmente, banquetearem-se com as sobras da macabra alimentação.
À soleira da porta frontal, sentado, observava atento a passagem dos animais cansados; o fato embora corriqueiro, sempre atraía atenção dos moradores.
Súbito uma daquelas últimas reses prostrara-se ao chão, atraindo a atenção dos tropeiros que se aproximaram seguidos por um cão. Ante a imobilidade do animal, atiçaram o companheiro cuja valia nada adiantou. A amuada permanecia impassível a fitar o cachorro importuno.
--- Chama o Trovão, Minduim! Gritou nervoso Zé Minero a se mostrar impaciente.
Sem delongas, o boiadeiro auxiliar disparou retornando imediato na companhia de outro cachorro; este, de porte médio, coberto por manchas marrons por todo o corpo; mostrava-se inquieto, lépido nos movimentos. Era o Trovão.
Logo que chegou Trovão assumiu a liderança das investidas. Treinado para aquelas ocasiões de amuo, logo que ouviu a ordem de atacar Trovão se lançou no focinho da infeliz e ali grudou; meneou a cabeça de um lado a outro para tirar melhor proveito da mordida, após a que veio a forçar as pernas para trás num desfavorável cabo de guerra, embora causasse mais sofrimento à vítima. A vaca encolhia e esticava o pescoço no vão esforço para livrar-se da dor.
Os três boiadeiros observavam a cena; o outro cão latia insistente em volta.
--- Solta, Trovão! Ordenou o provável chefe. Concluiu:
... Pica a mandriona aí, Zé Minero!
O boiadeiro atento, manobra o cavalo e ataca. A aguilhada veio em riste rumo à parte baixa da perna do animal indefeso; o aguilhão perfurou e rasgou o couro expondo flagrante a nervura branca acima da pata, levando-a a escoicear o ar. Zé Minero voltava a carga... a aguilhada sempre em riste continuou permitindo perfurar o animal uma, duas, três, até sangrar-lhe todo o corpo.
---Ôôôaa! ...Vaca! Gritava excitado Zé Minero, ante a imobilidade do animal amuado. Nada!
--- Rodeia com o rabo dela, Zé! Sugere outro boiadeiro.
Zé Mineiro desmonta. Segura a ponta do rabo da infeliz e dá vigoroso safanão na tentativa de voltear com ela. O peso é muito. Desiste.
--- Quebra o rabo dela, home! Grita o boiadeiro anterior.
Feito sem resultado, Zé Minero monta esbaforido e saí.
--- Onde ocê vai, home?
--- Buscar um laço com o Arcide!
A argola metálica do laço media um raio de uma polegada, cujo diâmetro de meio centímetro do metal constituía, naquele caso, num objeto ideal para espancamentos, desconsiderados, ainda, o peso e a consistência do trançado do couro.
Zé Minero chegou decidido. Dobrou duas voltas na mão mantendo a argola à mostra arremetendo violentamente seu arranjo na cara do animal. Aos gritos de “Levanta, desgraçada!” reiterava os golpes por entre seus olhos. O animal negaceava na tentativa de livrar os olhos, porém, as laçadas castigavam-no a fronte e a boca. Zé Minero finalmente cansa; chama o Trovão e ordena: Ataca!
O feroz cão salta abocanhando novamente o focinho da exausta rês, permanecendo rosnando com a presa na boca.
Os minutos passavam assim, escoando no sofrido impasse com eles interrompidos naquele quadro indesejável, sem desfecho. Eis, finalmente, surgiu o inesperado: sustentando-se sobre os joelhos, num gesto brusco elevou o terrível cão pelos ares e o balançou feito reles trapo, embora o desgraçado do Trovão não a soltasse. Ficou lá em cima a procurar com as patas um ponto de apoio que não encontrava.
Surpresos ante a inesperada reação da rês, contra ordenaram o cão que veio a estatelar-se ao chão.
Livre, recompôs-se de pé, altiva, soberana, embora do corpo aguilhoado minasse o sangue vivo; do nariz, um filete insistia correr. Olhou à sua volta e como reconhecesse o malfadado destino pôs-se a caminhar lentamente.
Não restava dúvida: aquele animal fizera uma longa e sofrida avaliação do que ocorria, se entregando agora ao seu fatídico destino. Não havia como fugir do sacrifício inevitável.
Recolhidos os cães, acercaram-se da infeliz.
--- A vaca parece prenha, patrão? Confidenciou um deles.
--- Toca!... toca!... --- ordenou o chefe --- ... O trato é entregar os 162 animais... não vou deixar nenhum pra trás!
A velha Maranhão, --- em seu plano esburacado e poeirento,--- não mostrou-me apenas o sofrimento humano; vi-o também, --- digo até com maior pesar e injustificada ação, --- nos olhos súplices e tristes de outros animais, tal o contido nas lágrimas que corriam dos olhos daquela pobre e indefesa criatura, prestes a dobrar a Jaraguá.