O nome da Santa Milagrosa
A noite já ia alta e a chuva não parava. Começou como uma chuva fina, mas aos poucos foi se avolumando, encharcando tudo. Sem a luz elétrica na cabana, sem a luz da lua para ajudar, a escuridão tomou conta do lugar. A mata, o riacho e o roçado novo do João tudo desapareceu na escuridão debaixo da chuvarada.
A única exceção era um candeeiro de querosene que soltava uma fumaça preta e iluminava o quarto úmido onde uma mulher gemia de dor e de febre. Ao seu lado, desesperado, João maldizia a hora em que dera ouvidos a sua mulher quando ela disse num sussurro que estava se sentindo um pouco melhor, e que não precisava chamar o médico.
A essa hora, com uma chuva dessas, nenhum médico se aventuraria a vir para essas bandas esquecida por Deus distante mais de duas horas de carro de um povoado mais próximo. Se tivesse um carro e não fosse a chuva poderia levar a mulher até o povoado onde havia um posto de saúde e com sorte encontraria uma enfermeira e algum remédio, mas agora já era tarde. Não havia como arranjar um carro e nem o posto estaria aberto.
João enxugou o suor que escorria pelo seu rosto, observou o semblante da sua mulher e viu que ela estava morrendo. Segurou o seu pulso e estava quase imperceptível, seu gemido baixo quase um sussurro. A pele quente queimava como fogo e João sabia que nada poderia fazer. Umedeceu uma toalha velha colocou sobre a testa da mulher e rezou uma ave-maria. Era a única reza que conhecia.
Nesse momento sentiu um calafrio e temeu que houvesse chegado a hora. Ouviu um ruído e descobriu que alguém batia a porta. Quase não teve ânimo para levantar, se arrastou até a porta e abriu. Era um homem de meia idade, todo molhado, sujo de lama dos pés a cabeça.
- Meu carro atolou nesta estrada e na escuridão eu só consegui ver a claridade da sua casa. Estou todo molhado, sujo e cansado. Fiquei embaixo da chuva tentando desatolar o carro, mas no escuro ficou totalmente impossível.
Vendo o desespero do João, o estranho pediu permissão para ver a doente e em seguida afirmou: Se o senhor puder me dar um prato de comida e um lugar seco para dormir, acredito que posso ajudar o senhor.
O homem pediu um pedaço de papel, um pedaço de pano, agulha, linha e um pedaço de cordão. Com alguma dificuldade confeccionou um pequeno amuleto costurando o tecido e colocou dentro dele o pedaço de papel tendo antes escrito nele alguma coisa. Voltou triunfante até o quarto do casal e explicou: Acontece que eu conheço uma simpatia milagrosa que vai salvar a sua esposa. Coloque este amuleto no pescoço da sua mulher e reze três ave-marias. Depois, deixe-a dormir que amanhã ela vai acordar melhor. Só tem uma coisa muito importante que você não pode esquecer nunca. Jamais abra o amuleto ou leia o que está escrito no papel. Se você fizer isso o encanto se quebra e nunca mais vai poder contar com o poder deste amuleto.
Desesperado como estava, João acreditou plenamente no milagre prometido. Colocou o amuleto no pescoço da esposa, até achou que ela passou a respirar melhor. Em seguida, preparou um bom banho, separou para o visitante uma roupa seca e enquanto ele tomava o seu banho, preparou um prato de comida e uma sopa quente. Preparou a cama e cobriu com o melhor tecido para dar o máximo de conforto para o visitante.
João passou a noite na cabeceira da cama da sua mulher. Adormeceu de madrugada e quando acordou já era quase meio dia, sua mulher respirava suavemente, sem aqueles gemidos e sem febre. O estranho visitante havia desaparecido e dele só se avistou as marcas deixadas pelo seu carro no atoleiro. Poucos dias depois ela estava boa.
Anos depois, quando a vizinha adoeceu e foi desenganada pelos médicos, João se lembrou daquele amuleto milagroso. Correu de volta para sua casa, o amuleto estava cuidadosamente guardado numa caixa de madeira especialmente fabricada para esse fim. Alegremente se dirigiu para a casa do compadre e apresentou a solução milagrosa. Colocou no pescoço da mulher e rezou três ave-marias. Dias depois a mulher estava totalmente recuperada.
A notícia do milagre correu pela redondeza como um rastilho de pólvora. Todos queriam saber como foi que isso aconteceu, quem era a santa milagrosa e como um instrumento tão valioso caiu nas mãos do João. Várias vezes o João foi solicitado para emprestar o amuleto e todas as vezes ele foi pessoalmente colocar o amuleto no pescoço do doente e todos ficaram milagrosamente recuperados.
Várias perguntas povoavam a cabeça do João. Ele não sabia o nome daquele homem, não sabia nem se ele era mesmo um homem ou uma visagem. Não sabia o nome da santa em nome da qual tantos milagres já havia realizado e nem o que dizia a mensagem tão milagrosa escondida naquele papel. Sabia que a resposta estava em suas mãos, dentro do amuleto. Mas sabia também que o segredo tinha que ficar ali para sempre para preservar o seu poder.
O mistério queimava na cabeça do João. Dia e noite pensava quem seria aquele mensageiro do bem que na escuridão da noite mais longa de sua vida havia levado aquele amuleto. Se ao menos soubesse o nome da Santa dona de tanto poder ele poderia render-lhe homenagem, poderia fazer uma pequena capela com seu nome. Mas aquele homem desaparecera tão misteriosamente quanto aparecera, sem deixar nome nem rastro. Só ficaram as três ave-marias para rezar e o papel escondido no amuleto.
Muitos anos se passaram sem que João conseguisse descobrir o mistério. E o desejo de conhecer a autora de tantos milagres se tornou forte demais para resistir. João chegou a conclusão de que já havia desfrutado mais do que merecia daquela benção e estava na hora de abrir mão dos poderes daquele amuleto e descobrir tudo, para render homenagem a quem de fato merecia. Precisava pensar assim para se justificar aquilo que iria fazer. Abrir o amuleto e ler a mensagem gravada no papel abençoado. Quebrar o encanto.
As mãos do João tremiam tanto que teve dificuldade de pegar a tesoura. Com muito custo conseguiu cortar o pano que protegia a papeleta. O coração disparou quando sentiu na ponta dos dedos aquele pedaço de papel que um dia entregara para um estranho sem saber o que iria acontecer. Agora, anos depois ele abria o envelope para descobrir a mensagem e o nome da sua Santa protetora. Seus dedos pegaram o papel, desdobraram, mas seus olhos úmidos não conseguiram distinguir a frase. Desesperado procurou os óculos que por falta de hábito de leitura esquecera no fundo do armário. Localizou, e sem paciência até para tirar a poeira colocou sobre os olhos, e embora com grande dificuldade conseguiu soletrar a frase que dizia:
“Se eu conseguir um prato de comida e uma cama para descansar, pouco me importa que a mulher morra”